Sob as crianaças em situação de rua...
As crianças apresentaram duas razões
principais que as levaram a fugir de casa e recorrerem à rua: por
serem vítimas de maus-tratos em sua casa ou por necessitarem suprir
carências decorrentes de sua condição socioeconômica. Elas
representavam a rua de modo ambíguo, ora como uma experiência
prejudicial a si próprias, ora como ponto de acolhimento, pois
recorriam a ela como alternativa para livrarem-se dos ambientes
hostis de onde eram provenientes. Contudo, reconheciam que a rua não é
um lugar amistoso. Eram conscientes de que sua permanência na rua
estimulava-as a fazer "coisas ruins". Elas também se queixavam do
tratamento que recebiam dos adultos e de seus adversários. As
rivalidades entre os grupos de crianças faziam parte de seu
cotidiano, por isso andavam sempre acompanhadas por seus pares.
Algumas crianças, antes de fugirem de casa, já tinham a rua como um
espaço usual no seu dia-a-dia; nesses casos, as crianças não se
apresentavam tão críticas em relação à vida na rua.
Para
integrarem-se nesse meio e pertencerem a um grupo, as crianças
precisavam fazer coisas em comum: "cheirar cola", pedir esmola e
cometer pequenos furtos. Não havia como fugir dessa rotina, fosse
para sobreviverem à fome ou para conseguir a simpatia dos
companheiros, as crianças que ficavam na rua eram pressionadas a
agirem conforme o padrão. Por outro lado, a rua também tinha seus
atrativos, sobretudo a liberdade de fazerem o que desejavam, salvo as
limitações de suas próprias carências. Mas, ainda assim, segundo as
representações apreendidas nos discursos, o saldo era negativo. As
crianças classificavam a rua como uma experiência ruim.
Freqüentemente, conseguiam descrever o que era ruim na rua, mas nem
sempre sabiam dizer o que era bom.
Você lembra de uma coisa boa que aconteceu com você?
M. Não sei.
E uma coisa ruim que você nunca esqueceu?
M. Ficar na rua.
P. Você gosta da vida que está levando?
E. Mais ou menos.
P. O que tem de bom e o que tem de ruim?
E.
De ruim... eu preciso de roupa, de sapato, preciso de tudo. De
mal... preciso parar de cheirar cola, de fumar pedra, de roubar, não
ficar na rua. Queria ter uma roupa, ter um trabalho, ter um sossego,
ter uma casa, ter uma mulher.
P. E o que é bom para você, na vida que você tem?
E. Não sei. P. O que você gostaria de contar pra mim dessa experiência de estar na rua?
K. Eu gosto de ficar na rua. Estou tentando parar de fazer coisa ruim, cheirar cola, fumar cigarro, maconha.
P. O que é bom e o que é ruim na rua.?
K. Na rua, nós come coisa mais gostosa.
P. O que é difícil na rua?
T.
Pra mim é por causa que os polícia bate em nós. A gente pede
dinheiro pras pessoas e elas não dá. A gente pede pra pagar uma coisa
pra nós comer, eles não pagam. Então, na rua, a gente tem uma parte
boa, mas uma parte ruim. A parte boa é do carinho, do amor e do
carinho que se tem das pessoas (refere-se aos amigos). E a parte ruim
é que, durante o dia, a gente fica com fome, muita fome. À noite, a
gente entra (no albergue), toma banho e come, mas, durante o dia, a
gente fica com fome, não tem onde tomar banho. Se não fosse aqui a
gente ia ficar sujo, imundo. Tem gente que fala que a gente fica na
rua porque quer. Eles não sabem o motivo que a gente tem pra tá na
rua. Não é porque eu quero. Eu queria morar com a minha mãe (tia
guardiã). Mas ela deu eu pro meu pai, com 10 anos. Aí eu fugi.
O dia-a-dia
Quando
as coisas transcorriam normalmente, as atividades das crianças
consistiam em brincar, cheirar cola, perambular, pedir esmola e
participar das atividades organizadas pelas instituições que acolhiam
as crianças em situação de rua. As crianças chegavam a percorrer
longas distâncias em um único dia, do centro para a periferia da
cidade e vice-versa.
P. Queria que você me contasse sua experiência na rua.
G.
Eu tô aqui desde que abriu o albergue. Uso droga, cheiro cola, jogo
bola, capoeira, fico com meu irmão. Todo dia nós vai para prainha, no
Guarapiranga.
P. Conte-me sua experiência de vida na rua.
E.
Eu cheiro cola, roubo, uma par de coisa, fumo maconha, menos farinha
que eu não cheiro, e menos cocaína, essas coisas eu não uso.
Acontece uma par de coisa, os moleques na rua me batem, tem vez que
eu vou pro CCCA2 ou eu fico aqui no Bar, arrumo dinheiro aqui.
P. O que você faz na rua?
E.
Na rua, fico cheirando cola, roubando. Roubando não, eu não roubo,
roubo de vez em quando. Fumando pedra não, eu não fumo pedra não, de
vez em quando eu fumo. Mas só que eu fico cheirando cola aqui, de vez
em quando eu vou lá no CCCA, na Casa Aberta, e no terminal Santo
Amaro, que tem um abrigo lá. Aí, de noite, eu venho pra cá, pra
dormir, depois eu volto de novo lá.
Os conflitos
Os conflitos Os
conflitos vivenciados pelas crianças ocorriam em diversas
instâncias: com a polícia, com os adultos habitantes da rua, com o
cidadão comum e com seus pares. As crianças conviviam com a
hostilidade diariamente, a sensação de desamparo era constante porque
não conseguiam desvencilhar-se de seu maior inimigo: a violência.
P. Faz tempo que você está na rua?
K.
Desde 1994 que eu estou na rua. Eu estava em Susano (interior do
estado de São Paulo). O moleque me chamou pra vir pro Brás (centro da
cidade de São Paulo). Aí eu vim com meu irmãozinho. Eu fiquei mor
(muito) assustado. Aí eu e meu irmão voltamo pra Susano, pra nossa
casa.
P. Você ficou assustado com o quê?
K. Com a polícia, antes eu tinha maior medo de polícia. (...) Mas agora não tenho mais medo não.
P. Quando você estava na rua, como você era tratada lá? Quem cuidava de você?
J. Eu tinha minhas amigas, né. Mas era muita briga. (...)
P. Quem te protegia?
J. Só Deus. Eu ficava pensando em Deus e nada acontecia comigo.
Os grupos
A
inserção das crianças nos grupos de amigos tinha o propósito de se
protegerem, eram essenciais para sua sobrevivência na rua. A
solidariedade era um lema. Mas, em contrapartida, essa estreita
convivência também era motivo de muitas desavenças. Ainda assim,
querendo ou não, elas precisavam pertencer a algum grupo para se
manterem protegidas.
P. A rua não é perigosa?
T.
Pra mim não, porque eu ando com uma par de menina e de menino. É uma
turma de menina e meninos, nós anda tudo junto, a maioria. Se alguém
vem mexer com nós, eles defendem nós. Mas não vai assim na
violência, nós conversa. Mas se um menino vier agredir, nós agride
também.
P. Você já brigou?
T.
Muitas vezes. Sabe por quê? Eu não gosto que mexe com minhas amigas.
A gente é assim... se a gente tem um dinheiro... se eu ganho um
dinheiro e tá só eu, eu não gasto só comigo. Eu gasto com eles
também, porque, quando eles têm, eles gastam comigo. Se tá quatro
pessoas e tem dez reais, é dois e cinqüenta pra cada um. Se tá só
eu e a outra pessoa, é cinco pra cada. A gente compra coisa pra nós
comer. O resto, a gente compra roupa, sandalha, creme de cabelo,
maquiagem. Não é porque a gente mora na rua que a gente vai andar mal
arrumado. Porque as pessoas ficam olhando pra nossa cara.
H.
Eu sempre andei sozinho, nunca andei com gangue, nunca andei com
grande, nunca andei com maior que eu. Não gosto de andar com muito
moleque, eu ando só com meu colega, só nós dois. Porque é muita
zoeira, começa aquela confusão, sai briga, um pode se machucar, pode
se comprometer na vida, daí pode matar sem obrigação. E não pode ser
assim com muita violência. (...) Eu não sou de confusão, tia, mas
quem arranjar comigo, também leva. Eu não tô na rua pra mim ser saco
de pancada, pra mim apanhar desses moleques. Eu tô na rua porque
minha vida tá ruim.
O desconforto
O
que parece incomodar mais as crianças, além do tratamento hostil que
recebiam na rua, era o desconforto devido à fome, ao frio e à falta
de higiene. Esse mal-estar era tão perturbador que havia crianças que
chegavam a hesitar se retornavam ou não para casa, apesar do
ambiente hostil com o qual vinham convivendo. Mas, no "frigir do
ovos", acabavam decidindo-se pela sua manutenção na rua ou nos
abrigos.
P. Como é ficar na rua?
L. Não é bom, não. Você passa um montão de frio. Tem gente que maltrata nóis.
P. O que acontece com as crianças quando elas estão na rua, como se cuidam?
J.
Na rua é muito difícil a gente se cuidar. A gente tá sujo. Onde nós
ia, num lugar, nós senta, deita. Mas onde eu tava tinha um lugarzinho
que a gente tomava banho, mas é frio, né. Uma casinha. Mas roupa, a
gente se arrumava. Às vezes a gente colocava a mesma roupa. Às vezes
não. Às vezes a gente ficava suja. Tem bastante gente que fica com
medo de dormir na rua. Tem medo de bater nelas. Tem medo de morrer.
P. Você dormia no chão?
J.
No chão, só com uma coberta. Era ruim pra dormir no chão. Até
pensava, preferia ficar na minha casa do que ficar na rua. Aí fui me
acostumando. Aí depois fiquei pensando pra que serve isso e comecei a
ir pro SOS3.
Aí acostumei, mesmo que eu voltar pra casa, não vou poder ficar
lá, não vou agüentar. Minha mãe (madrasta) vai bater muito, porque,
dessa vez, eu fiquei fora mais que os outros tempos.
O tempo
Na
rua, as crianças tinham a noção do tempo relativamente prejudicada. O
uso de drogas era a principal razão para essa desorientação. O fato
de não freqüentarem a escola, nem desenvolverem uma atividade
regular, também dificultava sua orientação no tempo, uma vez que a
ociosidade torna indiferente se determinado dia é segunda-feira,
sábado ou feriado.
P. Faz tempo que você tá na rua?
W. Faz.
P. Desde quando?
W. Desde 99.
P. Mas você não lembra que mês? Porque nós ainda estamos em 99.
W. Desde seis anos. Eu tava na rua.
P. E agora você tá com doze.
W. É.
P. Há quanto tempo você tá na rua?
E. Deixa eu ver quantos mês... faz uns cinco, dez meses.
extraido de:
Ribeiro, Moneda Oliveira. (2003). A rua: um acolhimento falaz às crianças que nela vivem. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 11(5),
622-629. Retrieved April 11, 2013, from
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692003000500009&lng=en&tlng=pt.
10.1590/S0104-11692003000500009.
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