sexta-feira, 12 de abril de 2013

As crianças da rua

Sob as crianaças em situação de rua...

 

As crianças apresentaram duas razões principais que as levaram a fugir de casa e recorrerem à rua: por serem vítimas de maus-tratos em sua casa ou por necessitarem suprir carências decorrentes de sua condição socioeconômica. Elas representavam a rua de modo ambíguo, ora como uma experiência prejudicial a si próprias, ora como ponto de acolhimento, pois recorriam a ela como alternativa para livrarem-se dos ambientes hostis de onde eram provenientes. Contudo, reconheciam que a rua não é um lugar amistoso. Eram conscientes de que sua permanência na rua estimulava-as a fazer "coisas ruins". Elas também se queixavam do tratamento que recebiam dos adultos e de seus adversários. As rivalidades entre os grupos de crianças faziam parte de seu cotidiano, por isso andavam sempre acompanhadas por seus pares. Algumas crianças, antes de fugirem de casa, já tinham a rua como um espaço usual no seu dia-a-dia; nesses casos, as crianças não se apresentavam tão críticas em relação à vida na rua.
Para integrarem-se nesse meio e pertencerem a um grupo, as crianças precisavam fazer coisas em comum: "cheirar cola", pedir esmola e cometer pequenos furtos. Não havia como fugir dessa rotina, fosse para sobreviverem à fome ou para conseguir a simpatia dos companheiros, as crianças que ficavam na rua eram pressionadas a agirem conforme o padrão. Por outro lado, a rua também tinha seus atrativos, sobretudo a liberdade de fazerem o que desejavam, salvo as limitações de suas próprias carências. Mas, ainda assim, segundo as representações apreendidas nos discursos, o saldo era negativo. As crianças classificavam a rua como uma experiência ruim. Freqüentemente, conseguiam descrever o que era ruim na rua, mas nem sempre sabiam dizer o que era bom.
Você lembra de uma coisa boa que aconteceu com você?
M. Não sei.
E uma coisa ruim que você nunca esqueceu?
M. Ficar na rua.
P. Você gosta da vida que está levando?
E. Mais ou menos.
P. O que tem de bom e o que tem de ruim?
E. De ruim... eu preciso de roupa, de sapato, preciso de tudo. De mal... preciso parar de cheirar cola, de fumar pedra, de roubar, não ficar na rua. Queria ter uma roupa, ter um trabalho, ter um sossego, ter uma casa, ter uma mulher.
P. E o que é bom para você, na vida que você tem?
E. Não sei. P. O que você gostaria de contar pra mim dessa experiência de estar na rua?
K. Eu gosto de ficar na rua. Estou tentando parar de fazer coisa ruim, cheirar cola, fumar cigarro, maconha.
P. O que é bom e o que é ruim na rua.?
K. Na rua, nós come coisa mais gostosa.
P. O que é difícil na rua?
T. Pra mim é por causa que os polícia bate em nós. A gente pede dinheiro pras pessoas e elas não dá. A gente pede pra pagar uma coisa pra nós comer, eles não pagam. Então, na rua, a gente tem uma parte boa, mas uma parte ruim. A parte boa é do carinho, do amor e do carinho que se tem das pessoas (refere-se aos amigos). E a parte ruim é que, durante o dia, a gente fica com fome, muita fome. À noite, a gente entra (no albergue), toma banho e come, mas, durante o dia, a gente fica com fome, não tem onde tomar banho. Se não fosse aqui a gente ia ficar sujo, imundo. Tem gente que fala que a gente fica na rua porque quer. Eles não sabem o motivo que a gente tem pra tá na rua. Não é porque eu quero. Eu queria morar com a minha mãe (tia guardiã). Mas ela deu eu pro meu pai, com 10 anos. Aí eu fugi.
O dia-a-dia
Quando as coisas transcorriam normalmente, as atividades das crianças consistiam em brincar, cheirar cola, perambular, pedir esmola e participar das atividades organizadas pelas instituições que acolhiam as crianças em situação de rua. As crianças chegavam a percorrer longas distâncias em um único dia, do centro para a periferia da cidade e vice-versa.
P. Queria que você me contasse sua experiência na rua.
G. Eu tô aqui desde que abriu o albergue. Uso droga, cheiro cola, jogo bola, capoeira, fico com meu irmão. Todo dia nós vai para prainha, no Guarapiranga.
P. Conte-me sua experiência de vida na rua.
E. Eu cheiro cola, roubo, uma par de coisa, fumo maconha, menos farinha que eu não cheiro, e menos cocaína, essas coisas eu não uso. Acontece uma par de coisa, os moleques na rua me batem, tem vez que eu vou pro CCCA2 ou eu fico aqui no Bar, arrumo dinheiro aqui.
P. O que você faz na rua?
E. Na rua, fico cheirando cola, roubando. Roubando não, eu não roubo, roubo de vez em quando. Fumando pedra não, eu não fumo pedra não, de vez em quando eu fumo. Mas só que eu fico cheirando cola aqui, de vez em quando eu vou lá no CCCA, na Casa Aberta, e no terminal Santo Amaro, que tem um abrigo lá. Aí, de noite, eu venho pra cá, pra dormir, depois eu volto de novo lá.
Os conflitos
Os conflitos Os conflitos vivenciados pelas crianças ocorriam em diversas instâncias: com a polícia, com os adultos habitantes da rua, com o cidadão comum e com seus pares. As crianças conviviam com a hostilidade diariamente, a sensação de desamparo era constante porque não conseguiam desvencilhar-se de seu maior inimigo: a violência.
P. Faz tempo que você está na rua?
K. Desde 1994 que eu estou na rua. Eu estava em Susano (interior do estado de São Paulo). O moleque me chamou pra vir pro Brás (centro da cidade de São Paulo). Aí eu vim com meu irmãozinho. Eu fiquei mor (muito) assustado. Aí eu e meu irmão voltamo pra Susano, pra nossa casa.
P. Você ficou assustado com o quê?
K. Com a polícia, antes eu tinha maior medo de polícia. (...) Mas agora não tenho mais medo não.
P. Quando você estava na rua, como você era tratada lá? Quem cuidava de você?
J. Eu tinha minhas amigas, né. Mas era muita briga. (...)
P. Quem te protegia?
J. Só Deus. Eu ficava pensando em Deus e nada acontecia comigo.
Os grupos
A inserção das crianças nos grupos de amigos tinha o propósito de se protegerem, eram essenciais para sua sobrevivência na rua. A solidariedade era um lema. Mas, em contrapartida, essa estreita convivência também era motivo de muitas desavenças. Ainda assim, querendo ou não, elas precisavam pertencer a algum grupo para se manterem protegidas.
P. A rua não é perigosa?
T. Pra mim não, porque eu ando com uma par de menina e de menino. É uma turma de menina e meninos, nós anda tudo junto, a maioria. Se alguém vem mexer com nós, eles defendem nós. Mas não vai assim na violência, nós conversa. Mas se um menino vier agredir, nós agride também.
P. Você já brigou?
T. Muitas vezes. Sabe por quê? Eu não gosto que mexe com minhas amigas. A gente é assim... se a gente tem um dinheiro... se eu ganho um dinheiro e tá só eu, eu não gasto só comigo. Eu gasto com eles também, porque, quando eles têm, eles gastam comigo. Se tá quatro pessoas e tem dez reais, é dois e cinqüenta pra cada um. Se tá só eu e a outra pessoa, é cinco pra cada. A gente compra coisa pra nós comer. O resto, a gente compra roupa, sandalha, creme de cabelo, maquiagem. Não é porque a gente mora na rua que a gente vai andar mal arrumado. Porque as pessoas ficam olhando pra nossa cara.
H. Eu sempre andei sozinho, nunca andei com gangue, nunca andei com grande, nunca andei com maior que eu. Não gosto de andar com muito moleque, eu ando só com meu colega, só nós dois. Porque é muita zoeira, começa aquela confusão, sai briga, um pode se machucar, pode se comprometer na vida, daí pode matar sem obrigação. E não pode ser assim com muita violência. (...) Eu não sou de confusão, tia, mas quem arranjar comigo, também leva. Eu não tô na rua pra mim ser saco de pancada, pra mim apanhar desses moleques. Eu tô na rua porque minha vida tá ruim.
O desconforto
O que parece incomodar mais as crianças, além do tratamento hostil que recebiam na rua, era o desconforto devido à fome, ao frio e à falta de higiene. Esse mal-estar era tão perturbador que havia crianças que chegavam a hesitar se retornavam ou não para casa, apesar do ambiente hostil com o qual vinham convivendo. Mas, no "frigir do ovos", acabavam decidindo-se pela sua manutenção na rua ou nos abrigos.
P. Como é ficar na rua?
L. Não é bom, não. Você passa um montão de frio. Tem gente que maltrata nóis.
P. O que acontece com as crianças quando elas estão na rua, como se cuidam?
J. Na rua é muito difícil a gente se cuidar. A gente tá sujo. Onde nós ia, num lugar, nós senta, deita. Mas onde eu tava tinha um lugarzinho que a gente tomava banho, mas é frio, né. Uma casinha. Mas roupa, a gente se arrumava. Às vezes a gente colocava a mesma roupa. Às vezes não. Às vezes a gente ficava suja. Tem bastante gente que fica com medo de dormir na rua. Tem medo de bater nelas. Tem medo de morrer.
P. Você dormia no chão?
J. No chão, só com uma coberta. Era ruim pra dormir no chão. Até pensava, preferia ficar na minha casa do que ficar na rua. Aí fui me acostumando. Aí depois fiquei pensando pra que serve isso e comecei a ir pro SOS3. Aí acostumei, mesmo que eu voltar pra casa, não vou poder ficar lá, não vou agüentar. Minha mãe (madrasta) vai bater muito, porque, dessa vez, eu fiquei fora mais que os outros tempos.
O tempo
Na rua, as crianças tinham a noção do tempo relativamente prejudicada. O uso de drogas era a principal razão para essa desorientação. O fato de não freqüentarem a escola, nem desenvolverem uma atividade regular, também dificultava sua orientação no tempo, uma vez que a ociosidade torna indiferente se determinado dia é segunda-feira, sábado ou feriado.
P. Faz tempo que você tá na rua?
W. Faz.
P. Desde quando?
W. Desde 99.
P. Mas você não lembra que mês? Porque nós ainda estamos em 99.
W. Desde seis anos. Eu tava na rua.
P. E agora você tá com doze.
W. É.
P. Há quanto tempo você tá na rua?
E. Deixa eu ver quantos mês... faz uns cinco, dez meses.

extraido de:

Ribeiro, Moneda Oliveira. (2003). A rua: um acolhimento falaz às crianças que nela vivem. Revista Latino-Americana de Enfermagem, 11(5), 622-629. Retrieved April 11, 2013, from http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692003000500009&lng=en&tlng=pt. 10.1590/S0104-11692003000500009.

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