domingo, 21 de dezembro de 2014

conto 4

A mãe se escondia atrás de uma pilha de roupa que precisava ser lavada quando o menino diz:
_Tive um sonho ruim
A mãe não se abala com a confissão.
_Eu sonhei que o avô morreu, que a avó morreu, que o tio e a tia morreram, que o pai morreu, que você morreu, que eu morri….
_Ai menino, para de falar besteira!
_Mas é verdade mãe, eu morri.
_Cala boca, menino.
A mãe não era de dar bronca, mas muito se preocupava com tudo que tinha de fazer. Precisava lavar a louca, lavar a roupa, depois secar, passar, limpar os quartos, a sala, a cozinha, a copa, o quintal, e o trabalho só se amontoando. Precisava se virar com a falta de dinheiro e buscar formas de sustentar a casa. Não queria ter mais uma preocupação. Não queria se preocupar com um diminuto que creia não estar vivo, destemendo a morte.
_Menino, desce já da janela. Você vai se machucar.
_Não vou não mãe! Eu já morri.
Podia ser que o menino não tivesse mais medo da morte, mas sentia medo de umas boas chineladas.
A mãe batia, mas sentia pena, o menino não fazia por mal. Mas ela também não podia deixar que ele ficasse por ai brincando com facas, correndo atrás de cachorros na rua, se pendurando em árvores.
_Hoje eu falei na escola que eu estava morto, ai as crianças começaram a rir. Ai eu falei que ia na casa delas a noite, e agora todo mundo tem medo de mim.
_Para de falar essas coisas, vai ficar sem nenhum amigo.
A mãe sabia a dificuldade de estar sozinha cuidando de uma criança tão pequena. Mas a vida é assim. As crianças precisam ser cuidadas, elas não crescem sozinhas, mesmo aquelas que pensam que estão mortas.
Certa vez a mãe acordou sentindo um cheiro de queimado. Levantou desesperada. Um bafo vinha da cozinha. O menino estava lá, hipnotizado pela mobília incendiando. A mãe desesperada, atravessou o fogo e conseguiu abrir as torneiras e lançar a água contra as chamas que já ganhavam volume. Foi com alguma luta que ela encerrou o perigo, mas o menino ficou com as mãos queimadas.
_Foi você que fez isso?
O menino, ainda atonito, sacudiu positivamente a cabeça. A mãe chorou o destino da cozinha, estava tudo destruído, e a falta de dinheiro não ajudaria em nada. O menino percebido da angustia da mãe diz.
_ Mãe, eu vou te ajudar.
A mãe chorou o seu destino.
Desde então o menino esqueceu a certeza da própria morte. As marcas do fogo na mão mostravam que ele estava bem vivo. Tão vivo que começou a cuidar de tudo, ajudava a mãe nas necessidades da casa, da comida até os pregos. Começou a trabalhar duro, terminou os estudos, conheceu uma moça, casou-se, teve seus próprios filhos.
A mãe foi acompanhando o menino crescer e ficar responsável. Foi também se acostumando no seu canto, vendo-o cuidar de si mesmo e de toda família. Se acostumou tanto que um dia mal percebeu, quando sentou-se na mesa de jantar, que não havia um prato para ela. Então olhou a família do filho comendo e conversando feliz. Logo se deu conta que poderia seguir seu caminho em paz.


terça-feira, 27 de maio de 2014

Conto 3

Ele tenta com esforço ver o que ocorre la embaixo, busca árvores, automóveis, pedestres, asfaltos, semáforos, uma moça saindo tarde de casa, um solitário taxista, um ambulante boêmio, mas mal consegue diferenciar um saco de lixo de um dentista. Apenas pode ver o reflexo do amplo salão nos vidros da janela, por mais que este ambiente pareça ser menos iluminado que a noite.

Fred finalmente desiste de encontrar qualquer distração, e se volta para dentro.
Fred não fala, apesar de estar entre amigos, de ser seu aniversario, da extravagante comemoração, ele não fala. Não fala, porque não conseguiu enxergar a rua. Realmente, nem podia mais produzir um sorriso que disfarçasse seu tédio. Tédio era a única palavra que ainda fazia sentido para Fred, nem raiva, nem tristeza, nem melancolia, só uma angustia que ele remoia com tão constante dedicação que já acreditava ser parte tão vital quanto o coração.
Carmela, namorada de Fred, organizara a comemoração. A praxe era que as cerimônias da fraternidade fossem convocadas por ele e cada um dos membros fosse responsável por trazer os convidados. Esta era primeira tentativa de convocação de Carmela, uma tentativa tão ousada que ninguém teve esperanças que Fred se emocionasse.
Há tempos a fraternidade havia sido formada. A Fraternidade da Esperança como dizia o próprio Fred, “onde se buscaria o limite da liberdade que o corpo humano poderia produzir”, e de fato tentaram do possível ao impossível, até finalmente desenvolver-se o Liquido, último enclave desta saga, resultado de processo custoso e complexo, de matéria-prima difícil de extrair e ainda mais dificil de sintetizar. que só era levado a cabo pela forte sensaçao proporcionada pela sua ingestao.
Fred admitia que houve a sua graça, quando começaram a consumi-lo. Mas agora não surtia qualquer efeito em seu corpo, e ninguém conseguia imaginar que outro caminho poderia ser tomado. Talvez o mais certo seria dissolver o grupo, decisao censurada pelo temor do que poderia ser a vida após.
Senilidade da vanguarda_ apelidava Fred. Já não tinha mais animos para aqueles encontros, mas para sua triste surpresa a fraternidade lhe preparara algo que ele já havia classificado como excrescência, mesmo porque há tempo não comemorava seu próprio aniversario. homenagem que pouco fazia sentido para ele, um homem acima do tempo, como a si mesmo se referia. Tudo era tão desprezível, que Fred decidiu desmoralizar de uma vez por todas aquele decrépito evento, assumindo o papel de orador, do qual, uma vez, tanto se orgulhou.
_Senhores, Boa noite. Os agradeço pela cerimônia que me oferecem, me honro pela homenagem prestada e pelo afeto com que sou recebido pelos amigos mais próximos, assim como pelos demais convidados. Entretanto, esta noite de alegria me provoca pesar, pois não posso me esquivar da indignação que sinto diante de alguns equívocos que temos repetido durante os últimos anos. Todos os mais íntimos sabem do assunto que pauto, e espero que, assim como eu, se repreendam também Mas evidenciarei o tema para os indivíduos mais distraídos e para os novos convidados. Iniciarei rejeitando os mal tratos que temos dedicado a nossos colaboradores. Essas pobres criaturas que não tem como se defender são alvos das mais diversas humilhações que a nossa cruel imaginação é capaz de cunhar. Sabemos que essa noite não é mais do que um novo turno desse tipo de atrocidade, todos sabemos disso, nós e eles. Em seguida, depois que um de nós estiver em condições avançadas de entorpecimento se iniciarão as nossas inconsequentes barbaridades. E para que?
Parte dos amigos aplaude. Fred não se detem.
_Contudo, existe questão, que por sua importäncia, necessita de pauta especifica. Sabemos do que se trata, algo a que reduzimos toda a nossa existencia, e que no momento eu me encontro liberto. O liquido, substancia que aprendemos a extrair e benficiar, tem sido o maior motivo de nossa lamentavel situação. Testemunho pois já me libertei desta substância, e acredito que vocês devam seguir o mesmo caminho. Vejam o estágio ao qual chegamos, qualquer motivo é suficiente para se engeri-lo, mas nunca haverá suficiente. Sabemos que o liquido é ilicito, e sabemos o custo que é se livrar dos residuos de sua produção. Não acredito que se possa seguir assim, por isso evoco o último resto de dignidade que nos resta e deixemos esta mancha em nossas histórias e assim possamos cultivar uma nova forma de humanidade.
Os presentes iniciaram um burburinho, alguns aplaudiram, outros deram uma forte risada, como se o pedido fosse mais uma idiossicrasia da festa. Mas Carmela não achou a menor graça, e fez a sua fala:
_Hipócrita, isso é o que é, um hipócrita. Discursa como se tivesse muita decência, mas sabemos que suas ações vão pra um caminho diverso. Discursa como se temesse a lei, como se não houvesse feito coisa pior. Você não sabe o que quer, a única coisa que procura é cultivar sua maioridade em relação aos demais. Meus amigos, esse discurso é só para isso, não veem? Ele só deseja mostrar a vulgaridade de nosso atos, e que ele, o iluminado de nosso grupo, recusa nossa bestialidade, como se a primeira besta não fosse ele, como se não fosse o criador do liquido. Quando ele nos acusou de sermos reprimidos, crianças mimadas que sentem vergonha de buscar a liberdade, quando já tinha esgotado qualquer vitalidade em seu corpo. Nós o seguimos de bom coração. E agora, de novo quase moribundo, inventa que devemos mudar nosso hábitos, como se com isso não fossemos sacrificar a originalidade de nós mesmos. E quando assim fizermos ele nos acusará de conservadores. Ele pensa que é ainda possível encontrar algo que o tire da letargia. Pois saiba, meu amado, que não existe mais nada. Não nos deixemos enganar por essa figura moribunda.
Fred olha indiferente a Carmela, com a luz de uma lâmpada branca refletindo o seu rosto. Carmela, em contraste, bufa de ódio, sentimento que ela ainda contiva. Ódio que foi crescendo a cada dia que compartia com Fred e seus comentários que invariavelmente, a desqualificavam. Mas como a única emoção que conseguia sentir era justamente este ódio, vivia ao lado de Fred.
Fred fitou lentamente os convidados que se divertiam com a briga do casal atrás da luz que pouca iluminava o salão.
_Desgraçado, se não fizesse esforço não teria organizado esta maldita festa pra despresivel como você. _bradou Carmela.
_Essa festa? Isso aqui? Não precisa me insultar. Eu sei que essa festa era para você, você que se diverte com este tipo de desgraça.
_Desgraçado é você, você que não sente mais nada, que é um infeliz, que não tem com quem contar. Essa festa estaria vazia se não fosse por mim.
_Pois tenho que reconhecer seu esforço em me agradar. Por exemplo este rapaz com quem você passou a noite conversando, ele sabe sobre as suas boas intenções? Será que ele é capaz de imaginar?
O rapaz em questão já não é mais capaz de caminhar por conta própria, cai no chao e começa vomitar.
_Meu querido, ele não poderia imaginar, pois ele era um presente. Um presente custoso, que me exigiu muita paciência, mas infelizmente ele agora poderá não cooperar, graças a seu gesto humanista.
O rapaz vomita tanto que um dos empregados carrega para uma das portas.
_Seu eu precisasse de uma criatura tão miserável eu mesmo teria buscado. Mas eu já não preciso disso. Inclusive meus queridos penetras, vocês sabem que quem se diverte mais com a festa são exatamente os nossos ilustres convidados? Desfrutem da bebida e preparem seus corações, pois a noite será entretida.
Jaime, um amigo antigo de Fred começa a gargalhar histericamente:
_Fred, meu caro, eu estava preocupado contigo, parecia que você tinha perdido a vontade nas pequenas artes, mas vejo que estava completamente enganado. Nunca tinha te visto tão irônico, e digo que este tempo que tem se mantido limpo tem te feito mal.
Fred boceja .
_Jaime, meu bom Jaime. Você sabe que esse detrito que o faz um pouco menos entediado, já não me causa qualquer comoção. Sabe que eu nunca estive tão lúcido e que tudo que digo é a mais crua verdade, e que se tem alguma ironia nisso tudo, e a falta de iniciativa de acabar ou começar com tudo de uma vez. A única ironia aqui é sua covardia para decidir o caminho a seguir.
Jaime disfarça o insulto e se retira para uma sala fechada. Carmela enxarcada de ódio, continua sua gritaria.
_ Nem o mais leal dos seus companheiros você preserva. Você não merece ninguém, muito menos a mim. Não adianta manter esse sorriso na cara, pois eu sei que você não sente nenhuma alegria, você não sente nada. Não sente mais nada.
Uma das amigas de Carmela, a abraça e sussurra algo em seu ouvido, parecia que queria acalmar a senhorita. Carmela estava transtornada, mas prestava atenção no que dizia a moça, até despencar em choro. Fred nunca a havia visto chorar, talvez fosse mentira. Mas seus os olhos estavam vermelhos. Uma de suas amigas a abraça e a conduz a um quarto.
Antes de se retirar ainda grita:
_Isto tudo é sua culpa.
Fred sabe que é verdade, mas não sente culpa alguma, nem acha graça na cena deplorável de Carmela. Ele resolve voltar a se aproximar na enorme vidraça que separa o salão do resto da noite. A vida continua lá fora e ninguém se importa. Fred busca mais uma vez qualquer coisa, sem conseguir encontrar. Não se frusta, pois já imaginava que não encontraria, talvez não tivesse o que procurar. Vira-se de costas e vê que ninguém se alterou com seu discurso.
O liquido já podia ser servido, o empregados passam pelo ambiente oferecendo taças. Apesar de sua indiferença, Fred orgulhoso reconhecia que realmente se tratava de iguaria. Oferecer a bebida para os convidados era um desperdicio para Fred, pois gente tão despreparada era incapz de desgutar artigo tão refinado. Para ele, só os membros deveriam desfrutar do Liquido.
Em alguns minutos o Liquido começa surtir efeito. Uma moça chora, mas talvez que qualquer relação com o intoerpecente. Alguém grita alto, apesar das suplicas de sua acompanhante para permanecer em silêncio. Um casal resolve se aproximar a um dos quartos, o que gera desconforto ao sujeito encarregado de abrir as portas. Um dos anfitriões se apressa em servir mais, para que os nervos relaxassem ou se exaltassem de vez.
Aos poucos a festa se torna o que deveria ser. Em breve um dos anfitriões iniciará as atividades. Esta noite será Jaime, que principia um discurso, mesmo sob o estado alterado dos presentes.
_Fred, caro amigo, sabe que durante todos estes anos, eu tenho estado ao seu lado, sempre o apoiei seduzido pela sua indiscutível inteligência e ousadia, e tenho que reconhecer que essa convivência constituiu momento de evolução para mim, contudo, como não poderia deixar de ser, em algum momento o brilho que no inicio ofusca nossos olhos, vai se esmaecendo em um inexpressivo fosco. Esta festa era para ti, Fred, pensamos em dar-lhe algum presente, algo que pudesse ressucitar suas adormecidas emoçoes. Entretanto, creio, após conversar com outros de nossos companheiros, que o seu tédio não tem mais limites. Já provaste de tudo, não existe sabor raro que não tenha sido objeto do seu paladar, e já não há nada nesta vida que te possa causar qualquer arrepio. Por isso é fato que nosso presente mais justo é transforma-lo em o homenageado da noite, diante de todos, para que não reste dúvida sob qual sensação é a mais aguda.
Fred sorri, mas no seu fundo está surpreso, pois sente medo. Sente medo da crueza de seus parceiros, assim como outros sentiram medo dele. Mas sobretudo, sente um outro tipo de medo, medo de ser desonrado como um daqueles estúpidos convidados que ignoravam a mais elementar das verdades. O medo, era algo que há muito não sentia. O medo lhe atrai, Fred começa a se excitar com o medo.
_Pois bem meus queridos, a dor pouco importa para quem já não vive. Logo se assim desejam eu pouco farei para evitá-la. Mas fiquem cientes, que assim que o fizerem, serei somente o primeiro , os demais sempre serão perseguidos pelo temor de serem os próximos.
_Sabemos disso Fred. Não foi uma decisão fácil, mas diante de tudo que já foi feito, talvez seja a senteça a ser cumprida por cada um de nós.
Ninguém mais ri no ambiente. Pedem a Fred que se levante, ele não obedece, um sujeito forte se aproxima e arrasta o atrofiado corpo de Fred. Neste instante trazem uma obscura cadeira de metal para o meio da sala, sob a qual Fred é atirado e amarrado. Em seguida uma moça traz um copo com um liquido verde que forçam Fred a beber. Ele grita e se debate, mas os músculos da face e do corpo vão aos poucos cansando. A carne fica fraca. Desiste de sua luta, enquanto os efeitos do químico que ingerira começam a se manifestar.
Carmela sai de dentro de uma das diversas salas. Ela com os olhos vermelhos e inchados, se aproxima lentamente. Já não aparenta tanto ódio, na verdade parece deter seus próprios passos, até se posicionar atrás da cadeira na qual  Fred esta pendurado.
Ela ergue os braços, mas hesita.
Fred percebe a hesitação, toma a palavra, balbuciada.
_Meus amigos, digo que não sinto rancor por nenhum de vocês, contudo quero fazer um ultimo pedido, um ultimo pedido de aniversario.
. Com as lágrimas lhe tomando novamente a face e os soluços lhe tomando a fala, Carmela responde:
_Meu amado Fred, apesar de nossas desavenças, sempre haverá algo que liga a nós dois. Também sei que faço isso pois coloco a decisão do grupo acima de tudo. Mas seguirei te amando e me encarregarei de realizar seu ultimo pedido.
_Pois bem, amigos. Eu desejo que a próxima seja esta vadia.
Carmela de uma vez mostra a todos como se extrai o liquido.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

conto 2




Conto 2
A lua iluminava uma trilha vermelha que desenhava o caminho até a esconderijo do predador. Horácio observava oculto ao longe, distância cuidadosamente mantida para não atiçar o faro do bicho. Ou quem sabe por medo. Temia que caso a fera não o matasse, outra coisa o mataria. Todos os cantos eram suspeitos: olhos vigiavam à espreita, um coro insuportável de insetos camuflava a respiração dos inúmeros inimigos.
Seu corpo exausto pedia para parar e descansar, quiçá retornar, buscar um lugar mais cômodo e seguro, mais quente, ao invés daquela floresta fria e ameaçadora. O esforço despendido o castigava. E por que tudo isso?
Horácio começa a recompor cada pegada que o condenava ao presente cruel. Ela, ignorando que ele desejava permanecer em casa, armou uma cesta com comida: _Quero comer no meio do mato_, dizia. _Temos de sair um pouco desta casa. Quero ar fresco_. Mas Horácio sentia que ela só queria contradizer seu desejo. O dia prometia ser gélido e pálido, péssimo para um passeio tão improvisado. Ela, visivelmente, não tinha qualquer plano traçado, simplesmente seguia uma vontade impulsiva, dissimulada em seu sorriso constante.
Horácio, injuriado, sentia o corpo sonolento, pedindo para não ir, mas não tinha coragem de contrariá-la. Eram tão lindos seus longos cabelos, suaves como a pele do sofá, fios tão negros quanto as cortinas fechando o quarto. A sua pele branca era tão macia quanto o toque dos lençóis. Seu cheiro, sedutor, enfeitiçava de tal maneira que não se podia mais pensar em algo que não fosse ela. Horácio sabia que nunca conseguiria negar qualquer pedido seu, por mais tolo que fosse. Mas ela só pedia que a acompanhasse a um piquenique.
Os dois se puseram em marcha. O caminho que ela inventou era longo, parecia não ter fim. O dia já vinha alto e ela ainda desejava cruzar um imenso pasto em busca de um rio, que não dava qualquer sinal de estar próximo. Os dois seguiam, sem trocar qualquer tipo de palavra ou qualquer afago, ela só balançava o deslumbrante vestido e vez ou outra soltava algum suspiro armado com seu sorriso. E que sorriso! Toda vez que ela sorria, Horácio se sentia mais atado àquele sorriso emoldurado em seus lábios tão delicados.
Os dois se enveredavam cada vez mais por um vasto e denso gramado. A tarde amena já não causava os incômodos do sol ardente. Ela deslizava atraente, sempre arrastando Horácio para mais longe. Ele tinha fome, mas ela obviamente não pararia antes do tal rio, mesmo que ele suplicasse, ela se desculparia com qualquer aborrecimento. “Não tem problema Horácio, pararemos em breve e você poderá finalmente saciar sua gulodice”. “Só até encontrarmos um lugar especial para comermos”. “Se quiser voltar pode ir, eu continuo sozinha”. Sabendo disso Horácio ficava quieto, preferia não se expor a mais uma derrota.
Finalmente escutaram o som de água. Um rio corria desesperado pelo pasto, alguns animais se aproximavam para beber de suas águas. Horácio respirava fundo o ar leve. Ela escutava e ria, vaidosa de mais uma vitória. Ele tentava sentir raiva, mas não conseguia. Ela era muito perfeita para que alguém a odiasse.
Apesar da beleza da paisagem, ela segue em frente. O caminho vai ficando mais odioso, o rio antes verde, fica turvo, a grama tão bonita, fica rala e seca. Horácio deseja voltar, mas ela anuncia. _Comeremos aqui_. Ele olha incrédulo para a paisagem espantosa, mas se senta exausto. A única coisa que explode em beleza é ela, se destacando no meio de tanta feiura.
Ela ajeita o vestido e se senta, abre a cesta e a distribui sobre a toalha, inicia o almoço do faminto Horácio. Mostra uma artificial surpresa com seu apetite. Os dois comem um pouco e também se embebedam um pouco. Ela pega um pedaço de pão e ameaça jogá-lo longe. Horácio se irrita uma vez mais com a brincadeira. Ela dá gargalhadas, ri até ficar constrangida com a seriedade dele.
Ela se estica e apoia a cabeça em seu colo, ele a olha obcecado pela beleza. Horácio fica paralisado, até que ela se levanta e sugere que continuem a caminhada. Ela sabia como tragar alguém.
Os dois seguem até onde a grama volta a nascer, cresce alta e dificulta o avanço. Mesmo com dificuldade, ela continua, elegante. Já Horácio sofre para carregar a cesta ainda pela metade. Cansado para. Apoia os braços sobre os joelhos, tenta se recuperar, enquanto ela corre sua mão por arbustos e vai se aproximando da mata. Zona fechada, insegura e perigosa. Ela age como uma criança que põe a mão no fogo demonstrando destreza diante dos covardes. Horácio suplica para que retornem. Ela fica cabisbaixa, apesar de não perder o sorriso. Horácio intensifica seus pedidos.
Ela se movimenta frenética. Algo parece mal. Horácio pressente o perigo. Ela continua saltitando distraída. Horácio implora, mas ela zomba girando a saia.
Ele grita. Ela olha assustada para ele. Mas já é tarde. Uma enorme Fera de olhos vermelhos salta da sombra e, de uma vez, agarra a moça.
Horácio fica entorpecido de medo. A Fera, com a moça frágil pendurada na boca, fita-o. Ainda viva ela faz, com suas últimas forças, um pedido de ajuda. Horácio não reage.
O robusto animal não perde mais tempo e desaparece dentro da mata. Horácio só escuta o grito da amada e tomado pelo coração se envereda pelo desconhecido. Não haverá mais volta.
O fraco corre sem parar, não olha para trás. A mata é densa, fecha seu caminho a cada novo passo. Ele tenta acompanhar o monstro seguindo o grito da amada:
_Me salve Horácio!
Ele vai se defendendo dos galhos das arvores que descem violentos. Arranhando-o. Ele não se entrega. Avança desesperado e não percebe que escurece rapidamente. A fera é veloz e logo se distancia. Ele se esforça, mas não consegue acompanhar. A perde de vista.
Cansado, Horácio para, respira duro e derrotado. Deixa o corpo cair. Olha voo no meio da escuridão. Canta, prometendo uma morte.em volta, só agora percebe que está completamente perdido. Uma ave desprezível levanta
A mata é cenário de histórias de finais trágicos, onde os mais valentes e audacioso perecem, quem dirá o desajeitado Horácio. Ele tenta retomar a respiração equilibrando o corpo sobre os joelhos. Olha em volta, se vê trancado no labirinto de enormes troncos, sente um calafrio como se seu corpo fosse atravessado por um infinito de agulhas.
A escuridão oculta todos os sinais da Fera, já não há mais qualquer caminho que o conduzisse para algum lugar. Estariam ele e ela condenados a morrer, somente questão de tempo. Se apoia sobre uma árvore e sentiu sangue fresco em um dos troncos.
_Meu deus! Será que ela já estava morta?_ Horácio tinha vontade de voltar pra casa, mas como abandoná-la no meio da mata, sem a certeza de sua morte? Será que o sangue frio era apenas pista do sangue que já não corria em suas veias? Horácio teme o pior, até escutar seu nome:
            _Horácio!
Era a voz dela. Esta viva.
Ele segue correndo. Sente que algo corre ao seu lado. Se assusta. Pisa em falso e rola sobre uma pequena elevação, a perna fisga com o mau jeito. Alguém ri no meio da escuridão. Horácio levanta e olha assustado ao seu redor. Que ser maligno lhe espreita? Escuta passos, sente que está sendo cercado, talvez tenha que lutar para sobreviver. Enfia a mão na cesta e agarra o primeiro metal que encontra. Puxa-o com firmeza e salta para fora uma reluzente faca de pão. Ridículo! Não lhe restam muitas alternativas a não ser seguir em frente.
Retoma a busca sendo seguido por algo, não consegue ver e por isso corre. Corre mancando por entre o breu, sentido que cada árvore pinga um pouco de sangue. Sente que lágrimas também escorrem de seu rosto.
Horácio não sabe se corre ao encontro dela ou, cada vez mais para dentro da mata, ao encontro do predador. Cada curva pode ser a armadilha final para o medroso Horácio.
_Quem este ai? pergunta.
Ninguém responde, Horácio só escuta uma respiração descontrolada, mas não tem certeza se não é a sua própria. As pernas doem, reclama pelo esforço deste salvamento fracassado. Pobre dela que morreria tão jovem. Um ódio lhe toma o coração, pensa em parar. Mas sente alguém tocar em seu ombro. Virá assustado e ataca. A lua, irônica, acende sua luz pela mata e ilumina tudo. Horácio desesperado olha ao seu redor e se vê sozinho, só estava ele e uma infinidade de troncos e folhas, o solo branco e liso. Ri de seu próprio medo.
De repente um grito.
É a voz dela, nítida. Está perto. Horácio busca. O luar ilumina algo ao fundo, algo difícil de distinguir. Horácio vai pouco a pouco se aproximando, mesmo pressentido o perigo. Chega mais perto. Consegue reconhecer algo na luz. A fera!
_Maldita lua que ilumina os caminhos que antes não podíamos ver_.
Horácio procura um esconderijo da luz.
A lua ilumina uma trilha vermelha que desenhava o caminho até o esconderijo do predador. Horácio observa oculto ao longe, distância cuidadosamente mantida pelo medo.
Teme que caso a fera não o matasse, outra coisa o mataria. Todos os cantos são suspeitos: olhos vigiam à espreita, um coro insuportável de insetos camufla a respiração dos inúmeros inimigos. Ele precisa salva-la.
Mas caso alcançasse a besta lutaria com o que? Com a faca de pão? Era melhor esperar que a besta se aquietasse em algum momento, então ele poderia atacar de surpresa. Horácio tenta refletir um pouco, mas só continua tremendo em seu canto, esperando um momento ainda melhor, um momento em que ele se envolveria de coragem, uma coragem que viria de dentro de si e que por si só acabaria com o mostro.
Ela grita mais uma vez. O monstro se movimenta frenético. Horácio teme que nunca haja um momento ideal de atacar. O rapaz reúne coragem. Talvez, ela não merecesse o sacrifício. O bicho grita!
Um grito de animal. E depois completo silêncio. O coração do moço treme, talvez fosse tarde demais, a coragem viria tarde demais. A lua foca uma luz cadavérica, denunciando a posição de Horácio. Ele lamenta o trágico fim de seu esforço, depois de tanto caminhar, com os pés quase sangrado, com o peito quase tombando, ele finalmente havia perdido.
Porém sente também certo alívio. Pensa em recobrar as forças para tentar o regresso, pelo menos ele ainda poderia se salvar. Mas Horácio se comove ao ver rasgado o bonito vestido da moça em um galho de árvore.
Repentinamente, um ódio enche seu corpo e ele pega um pedaço forte de madeira com o qual vingaria sua amada. A mata de repente se silencia, a lua generosa ilumina o caminho de Horácio até a posição da fera.
Horácio respira metálico, controla sua fúria para despejá-la de uma só vez na sua decisiva luta contra a besta, a última tentativa de defender sua honra. Se aproxima aos poucos, pôde ver o corpo do qual o sangue escoa, um corpo abatido, um corpo imenso.
Horácio olha apavorado o corpo da fera decepado com as tripas estiradas ao redor. Olha apavorado, tão apavorado que não vê sua morte se aproximando.

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Conto 1



Coberto de sangue, não se mexe, não respira, não pisca. Inabalável, rígido, frio, como se estivesse morto. Como se não houvesse ninguém ali. Queria que eu acreditasse que não estava lá. Como se não esperasse o momento ideal para atacar e matar. E, finalmente, o nada ser eu.
Já tem quase uma hora que me olha daquele jeito. Coberto de sangue, não se mexe, não respira, não pisca. Inabalável, rígido, frio. Exatamente como contavam. Eu tentava não acreditar em histórias, ainda que as temesse. Justo eu estava condenado ao encontro com a criatura. Criatura que desesperada por ter deixado de ser homem, acabava com outros homens, como eu.
Contavam-se as atrocidades mais terríveis. Um assassino, um corpo dilacerado, todo o ódio acumulado rastejando pela sala escura, esperando a chegada de mais uma vítima, estraçalhava com crueldade. Ninguém sobrevivia. Ninguém! Sua fúria rasgava a carne, chupava o sangue, triturava o crânio, roía os ossos. Dali só saiam as mais desagradáveis imagens, sem qualquer vestígio de terem sido corpos humanos.
Eu, pequeno e raquítico, tremo, choro, ofego, temo que me ataque. Quase morro com pavor da cara do animal que, com olhar frio, fareja as minhas debilidades, prometendo uma morte miserável. Fico assim.Mantendo o coração acelerado, Para não dormir, nem me distrair e não esquecer que ele ainda está lá,,
Não sei o que espera essa gente cruel. Não podia só me trancar? Não podia só me matar? Tinha que me prender ali, com esse esse selvagem? Me tratando como ração dada a cachorro faminto. Me forçando a dividir espaço com uma criatura incapaz de dividir o mesmo espaço.
Olho ao redor, só existe uma janela no alto da sala, que mal deixa passar o ar. Se aquilo não fosse uma criatura, poderia apoiar-me na fuga. Seríamos livres. Mas só eu quero ser livre. Ela continua sem se mover. Seus olhos com o mesmo vazio. Será que me observa? Será que sente os meus movimentos?? Será tão fatal que não precisa ver?
Não acabarei assim! Me levanto buscando mais ar. Não consigo respirar, o chão me sufoca. Me estico, me exponho. A criatura não se move, fica me olhando. Busco esconderijo, onde possa observa-la melhor. Me movo com cuidado sem oferecer brecha. Vou me esgueirando pelas paredes, tentando me afastar, procuro o lugar mais alto, subo numa inclinação da parede, me apoio nos tijolos mal postos, faço um esforço pra me equilibrar. Uma pedra mal intencionada escorrega. Caio em um golpe no chão. Levanto com coração disparado. Me recolho rápido. A criatura me olha inerte.
Sinto a perna lesionada pela queda, olho o sangue. A criatura se começa a se movimentar. Tento estancar o corte, mas o sangue jorra desesperado. O mal se aproxima de mim. Desespero. A morte é agora.
Levanto as mãos. Começo a gritar, escorrego no chão, sinto a pedra que rolou,Agarro-a. Atiro na cabeça da criatura. Ela cai para trás. O sangue sai da cabeça e inunda a sala. Agora o sangue é seu. Está morta, agora só resta eu. Eu, o assassino da besta. Eu e seu cadáver juntos para sempre. Sinto um breve alívio.
Mas a única porta se abre, luzes intensas entram e se esgueiram pelo sala, chegam até o corpo do defunto e o levantam. Depois avançam até meus olhos me cegando, me paralisam, não vejo nada, só sinto o medo. Fazem muito barulho, não sei o que acontece, o temor de uma punição me deixa exausto, encolho cansado, não posso lutar mais. Fecho os olhos e espero que tudo termine.
De repente a porta se fecha e as luzes se apagam. Eles se foram, mas deixam diante de mim um ser pequeno, raquítico, que treme, chora, ofega, temendo que eu o ataque. Eu continuo lá. Coberto de sangue. Não me mexo, não respiro, não pisco. Inabalável, rígido, frio, como se estivesse morto. Assassino, quase animal.

domingo, 16 de março de 2014

Nagarrafa é um blog, um blog o qual eu me propus a tecer, consciente de que a vida cotidiana é tao desesperadoramente chata que tudo fica chata, inclusive o blog o qual é meu propus a tecer.

Mas sem reclamaçoes. Hoje é domingo, e caso você esteja em Sao Paulo, estará desfrutando de um belo dia de Domingo, dourado pelo sol manhoso.