Ele tenta com
esforço ver o que ocorre la embaixo, busca árvores, automóveis,
pedestres, asfaltos, semáforos, uma moça saindo tarde de casa,
um solitário taxista, um ambulante boêmio, mas mal consegue
diferenciar um saco de lixo de um dentista. Apenas pode ver o reflexo
do amplo salão nos vidros da janela, por mais que este ambiente
pareça ser menos iluminado que a noite.
Fred finalmente
desiste de encontrar qualquer distração, e se volta para dentro.
Fred não fala,
apesar de estar entre amigos, de ser seu aniversario, da extravagante
comemoração, ele não fala. Não fala, porque não conseguiu
enxergar a rua. Realmente, nem podia mais produzir um sorriso que
disfarçasse seu tédio. Tédio era a única palavra que ainda fazia
sentido para Fred, nem raiva, nem tristeza, nem melancolia, só uma
angustia que ele remoia com tão constante dedicação que já
acreditava ser parte tão vital quanto o coração.
Carmela, namorada de
Fred, organizara a comemoração. A praxe era que as cerimônias da
fraternidade fossem convocadas por ele e cada um dos membros fosse
responsável por trazer os convidados. Esta era primeira tentativa de
convocação de Carmela, uma tentativa tão ousada que ninguém teve
esperanças que Fred se emocionasse.
Há tempos a
fraternidade havia sido formada. A Fraternidade da Esperança como
dizia o próprio Fred, “onde
se buscaria o limite da liberdade que o corpo humano poderia
produzir”, e de fato tentaram do possível ao impossível, até
finalmente desenvolver-se
o Liquido, último
enclave desta saga,
resultado de processo custoso e complexo, de matéria-prima difícil
de extrair e ainda mais dificil
de sintetizar. que só era levado a cabo pela forte sensaçao
proporcionada pela sua ingestao.
Fred admitia que
houve a sua graça, quando começaram a consumi-lo. Mas agora não
surtia qualquer efeito em seu corpo, e ninguém conseguia imaginar
que outro caminho poderia ser tomado. Talvez o mais certo seria
dissolver o grupo, decisao censurada pelo temor do que poderia ser a
vida após.
Senilidade da
vanguarda_ apelidava Fred. Já não tinha mais animos para aqueles
encontros, mas para sua triste surpresa a fraternidade lhe preparara
algo que ele já havia classificado como excrescência, mesmo porque
há tempo não comemorava seu próprio aniversario. homenagem que
pouco fazia sentido para ele, um homem acima do tempo, como a si
mesmo se referia. Tudo era tão desprezível, que Fred decidiu
desmoralizar de uma vez por todas aquele decrépito evento, assumindo
o papel de orador, do qual, uma vez, tanto se orgulhou.
_Senhores, Boa
noite. Os agradeço pela cerimônia que me oferecem, me honro pela
homenagem prestada e pelo afeto com que sou recebido pelos amigos
mais próximos, assim como pelos demais convidados. Entretanto, esta
noite de alegria me provoca pesar, pois não posso me esquivar da
indignação que sinto diante de alguns equívocos que temos repetido
durante os últimos anos. Todos os mais íntimos sabem do assunto que
pauto, e espero que, assim como eu, se repreendam também Mas
evidenciarei o tema para os indivíduos mais distraídos e para os
novos convidados. Iniciarei rejeitando os mal tratos que temos
dedicado a nossos colaboradores. Essas pobres criaturas que não tem
como se defender são alvos das mais diversas humilhações que a
nossa cruel imaginação é capaz de cunhar. Sabemos que essa noite
não é mais do que um novo turno desse tipo de atrocidade, todos
sabemos disso, nós e eles. Em seguida, depois que um de nós estiver
em condições avançadas de entorpecimento se iniciarão as nossas
inconsequentes barbaridades. E para que?
Parte dos amigos
aplaude. Fred não se detem.
_Contudo, existe
questão, que por sua importäncia, necessita de pauta especifica.
Sabemos do que se trata, algo a que reduzimos toda a nossa
existencia, e que no momento eu me encontro liberto. O liquido,
substancia que aprendemos a extrair e benficiar, tem sido o maior
motivo de nossa lamentavel situação. Testemunho pois já me
libertei desta substância, e acredito que vocês devam seguir o
mesmo caminho. Vejam o estágio ao qual chegamos, qualquer motivo é
suficiente para se engeri-lo, mas nunca haverá suficiente. Sabemos
que o liquido é ilicito, e sabemos o custo que é se livrar dos
residuos de sua produção. Não acredito que se possa seguir assim,
por isso evoco o último resto de dignidade que nos resta e deixemos
esta mancha em nossas histórias e assim possamos cultivar uma nova
forma de humanidade.
Os presentes
iniciaram um burburinho, alguns aplaudiram, outros deram uma forte
risada, como se o pedido fosse mais uma idiossicrasia da festa. Mas
Carmela não achou a menor graça, e fez a sua fala:
_Hipócrita, isso é
o que é, um hipócrita. Discursa como se tivesse muita decência,
mas sabemos que suas ações vão pra um caminho diverso. Discursa
como se temesse a lei, como se não houvesse feito coisa pior. Você
não sabe o que quer, a única coisa que procura é cultivar sua
maioridade em relação aos demais. Meus amigos, esse discurso é só
para isso, não veem? Ele só deseja mostrar a vulgaridade de nosso
atos, e que ele, o iluminado de nosso grupo, recusa nossa
bestialidade, como se a primeira besta não fosse ele, como se não
fosse o criador do liquido. Quando ele nos acusou de sermos
reprimidos, crianças mimadas que sentem vergonha de buscar a
liberdade, quando já tinha esgotado qualquer vitalidade em seu
corpo. Nós o seguimos de bom coração. E agora, de novo quase
moribundo, inventa que devemos mudar nosso hábitos, como se com isso
não fossemos sacrificar a originalidade de nós mesmos. E quando
assim fizermos ele nos acusará de conservadores. Ele pensa que é
ainda possível encontrar algo que o tire da letargia. Pois saiba,
meu amado, que não existe mais nada. Não nos deixemos enganar por
essa figura moribunda.
Fred olha
indiferente a Carmela, com a luz de uma lâmpada branca refletindo o
seu rosto. Carmela, em contraste, bufa de ódio, sentimento que ela
ainda contiva. Ódio que foi crescendo a cada dia que compartia com
Fred e seus comentários que invariavelmente, a desqualificavam. Mas
como a única emoção que conseguia sentir era justamente este ódio,
vivia ao lado de Fred.
Fred fitou
lentamente os convidados que se divertiam com a briga do casal atrás
da luz que pouca iluminava o salão.
_Desgraçado, se não
fizesse esforço não teria organizado esta maldita festa pra
despresivel como você. _bradou Carmela.
_Essa festa? Isso
aqui? Não precisa me insultar. Eu sei que essa festa era para você,
você que se diverte com este tipo de desgraça.
_Desgraçado é
você, você que não sente mais nada, que é um infeliz, que não
tem com quem contar. Essa festa estaria vazia se não fosse por mim.
_Pois tenho que
reconhecer seu esforço em me agradar. Por exemplo este rapaz com
quem você passou a noite conversando, ele sabe sobre as suas boas
intenções? Será que ele é capaz de imaginar?
O rapaz em questão
já não é mais capaz de caminhar por conta própria, cai no chao e
começa vomitar.
_Meu querido, ele
não poderia imaginar, pois ele era um presente. Um presente custoso,
que me exigiu muita paciência, mas infelizmente ele agora poderá
não cooperar, graças a seu gesto humanista.
O rapaz vomita tanto
que um dos empregados carrega para uma das portas.
_Seu eu precisasse
de uma criatura tão miserável eu mesmo teria buscado. Mas eu já
não preciso disso. Inclusive meus queridos penetras, vocês sabem
que quem se diverte mais com a festa são exatamente os nossos
ilustres convidados? Desfrutem da bebida e preparem seus corações,
pois a noite será entretida.
Jaime, um amigo
antigo de Fred começa a gargalhar histericamente:
_Fred, meu caro, eu
estava preocupado contigo, parecia que você tinha perdido a vontade
nas pequenas artes, mas vejo que estava completamente enganado. Nunca
tinha te visto tão irônico, e digo que este tempo que tem se
mantido limpo tem te feito mal.
Fred boceja .
_Jaime, meu bom
Jaime. Você sabe que esse detrito que o faz um pouco menos
entediado, já não me causa qualquer comoção. Sabe que eu nunca
estive tão lúcido e que tudo que digo é a mais crua verdade, e que
se tem alguma ironia nisso tudo, e a falta de iniciativa de acabar ou
começar com tudo de uma vez. A única ironia aqui é sua covardia
para decidir o caminho a seguir.
Jaime disfarça o
insulto e se retira para uma sala fechada. Carmela enxarcada de ódio,
continua sua gritaria.
_ Nem o mais leal
dos seus companheiros você preserva. Você não merece ninguém,
muito menos a mim. Não adianta manter esse sorriso na cara, pois eu
sei que você não sente nenhuma alegria, você não sente nada. Não
sente mais nada.
Uma das amigas de
Carmela, a abraça e sussurra algo em seu ouvido, parecia que queria
acalmar a senhorita. Carmela estava transtornada, mas prestava
atenção no que dizia a moça, até despencar em choro. Fred nunca
a havia visto chorar, talvez fosse mentira. Mas seus os olhos estavam
vermelhos. Uma de suas amigas a abraça e a conduz a um quarto.
Antes de se retirar
ainda grita:
_Isto tudo é sua
culpa.
Fred sabe que é
verdade, mas não sente culpa alguma, nem acha graça na cena
deplorável de Carmela. Ele resolve voltar a se aproximar na enorme
vidraça que separa o salão do resto da noite. A vida continua lá
fora e ninguém se importa. Fred busca mais uma vez qualquer coisa,
sem conseguir encontrar. Não se frusta, pois já imaginava que não
encontraria, talvez não tivesse o que procurar. Vira-se de costas e
vê que ninguém se alterou com seu discurso.
O
liquido já podia ser servido, o empregados passam pelo ambiente
oferecendo taças. Apesar de sua indiferença, Fred orgulhoso
reconhecia
que realmente se tratava de iguaria.
Oferecer a
bebida
para os convidados era um desperdicio para Fred, pois gente tão
despreparada era incapz de desgutar artigo
tão refinado.
Para
ele, só
os membros deveriam desfrutar do Liquido.
Em alguns minutos o
Liquido
começa surtir
efeito.
Uma moça chora, mas talvez que qualquer relação com o
intoerpecente. Alguém grita alto, apesar das suplicas de sua
acompanhante para permanecer em silêncio. Um casal resolve se
aproximar a um dos quartos, o que gera desconforto ao sujeito
encarregado de abrir as portas. Um dos anfitriões se apressa em
servir mais, para que os nervos relaxassem ou se exaltassem de vez.
Aos poucos a festa
se torna o que deveria ser. Em breve um dos anfitriões iniciará as
atividades. Esta noite será Jaime, que principia um discurso, mesmo
sob o estado alterado dos presentes.
_Fred, caro amigo,
sabe que durante todos estes anos, eu tenho estado ao seu lado,
sempre o apoiei seduzido pela sua indiscutível inteligência e
ousadia, e tenho que reconhecer que essa convivência constituiu
momento de evolução para mim, contudo, como não poderia deixar de
ser, em algum momento o brilho que no inicio ofusca nossos olhos, vai
se esmaecendo em um inexpressivo fosco. Esta festa era para ti, Fred,
pensamos em dar-lhe algum presente, algo que pudesse ressucitar suas
adormecidas emoçoes. Entretanto, creio, após conversar com outros
de nossos companheiros, que o seu tédio não tem mais limites. Já
provaste de tudo, não existe sabor raro que não tenha sido objeto
do seu paladar, e já não há nada nesta vida que te possa causar
qualquer arrepio. Por isso é fato que nosso presente mais justo é
transforma-lo em o homenageado da noite, diante de todos, para que
não reste dúvida sob qual sensação é a mais aguda.
Fred sorri, mas no
seu fundo está surpreso, pois sente medo. Sente medo da crueza de
seus parceiros, assim como outros sentiram medo dele. Mas sobretudo,
sente um outro tipo de medo, medo de ser desonrado como um daqueles
estúpidos convidados que ignoravam a mais elementar das verdades. O
medo, era algo que há muito não sentia. O medo lhe atrai, Fred
começa a se excitar com o medo.
_Pois bem meus
queridos, a dor pouco importa para quem já não vive. Logo se assim
desejam eu pouco farei para evitá-la. Mas fiquem cientes, que assim
que o fizerem, serei somente o primeiro , os demais sempre serão
perseguidos pelo temor de serem os próximos.
_Sabemos disso Fred.
Não foi uma decisão fácil, mas diante de tudo que já foi feito,
talvez seja a senteça a ser cumprida por cada um de nós.
Ninguém mais ri no
ambiente. Pedem a Fred que se levante, ele não obedece, um sujeito
forte se aproxima e arrasta o atrofiado corpo de Fred. Neste instante
trazem uma obscura cadeira de metal para o meio da sala, sob a qual
Fred é atirado e amarrado. Em seguida uma moça traz um copo com um
liquido verde que forçam Fred a beber. Ele grita e se debate, mas os
músculos da face e do corpo vão aos poucos cansando. A carne fica
fraca. Desiste de sua luta, enquanto os efeitos do químico que
ingerira começam a se manifestar.
Carmela sai de
dentro de uma das diversas salas. Ela com os olhos vermelhos e
inchados, se aproxima lentamente. Já não aparenta tanto ódio, na
verdade parece deter seus próprios passos, até se posicionar atrás
da cadeira na qual Fred esta pendurado.
Ela ergue os braços,
mas hesita.
Fred percebe a
hesitação, toma a palavra, balbuciada.
_Meus amigos, digo
que não sinto rancor por nenhum de vocês, contudo quero fazer um
ultimo pedido, um ultimo pedido de aniversario.
. Com as lágrimas
lhe tomando novamente a face e os soluços lhe tomando a fala,
Carmela responde:
_Meu amado Fred,
apesar de nossas desavenças, sempre haverá algo que liga a nós
dois. Também sei que faço isso pois coloco a decisão do grupo
acima de tudo. Mas seguirei te amando e me encarregarei de realizar
seu ultimo pedido.
_Pois bem, amigos.
Eu desejo que a próxima seja esta vadia.
Carmela de uma vez
mostra a todos como se extrai o liquido.
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