terça-feira, 27 de maio de 2014

Conto 3

Ele tenta com esforço ver o que ocorre la embaixo, busca árvores, automóveis, pedestres, asfaltos, semáforos, uma moça saindo tarde de casa, um solitário taxista, um ambulante boêmio, mas mal consegue diferenciar um saco de lixo de um dentista. Apenas pode ver o reflexo do amplo salão nos vidros da janela, por mais que este ambiente pareça ser menos iluminado que a noite.

Fred finalmente desiste de encontrar qualquer distração, e se volta para dentro.
Fred não fala, apesar de estar entre amigos, de ser seu aniversario, da extravagante comemoração, ele não fala. Não fala, porque não conseguiu enxergar a rua. Realmente, nem podia mais produzir um sorriso que disfarçasse seu tédio. Tédio era a única palavra que ainda fazia sentido para Fred, nem raiva, nem tristeza, nem melancolia, só uma angustia que ele remoia com tão constante dedicação que já acreditava ser parte tão vital quanto o coração.
Carmela, namorada de Fred, organizara a comemoração. A praxe era que as cerimônias da fraternidade fossem convocadas por ele e cada um dos membros fosse responsável por trazer os convidados. Esta era primeira tentativa de convocação de Carmela, uma tentativa tão ousada que ninguém teve esperanças que Fred se emocionasse.
Há tempos a fraternidade havia sido formada. A Fraternidade da Esperança como dizia o próprio Fred, “onde se buscaria o limite da liberdade que o corpo humano poderia produzir”, e de fato tentaram do possível ao impossível, até finalmente desenvolver-se o Liquido, último enclave desta saga, resultado de processo custoso e complexo, de matéria-prima difícil de extrair e ainda mais dificil de sintetizar. que só era levado a cabo pela forte sensaçao proporcionada pela sua ingestao.
Fred admitia que houve a sua graça, quando começaram a consumi-lo. Mas agora não surtia qualquer efeito em seu corpo, e ninguém conseguia imaginar que outro caminho poderia ser tomado. Talvez o mais certo seria dissolver o grupo, decisao censurada pelo temor do que poderia ser a vida após.
Senilidade da vanguarda_ apelidava Fred. Já não tinha mais animos para aqueles encontros, mas para sua triste surpresa a fraternidade lhe preparara algo que ele já havia classificado como excrescência, mesmo porque há tempo não comemorava seu próprio aniversario. homenagem que pouco fazia sentido para ele, um homem acima do tempo, como a si mesmo se referia. Tudo era tão desprezível, que Fred decidiu desmoralizar de uma vez por todas aquele decrépito evento, assumindo o papel de orador, do qual, uma vez, tanto se orgulhou.
_Senhores, Boa noite. Os agradeço pela cerimônia que me oferecem, me honro pela homenagem prestada e pelo afeto com que sou recebido pelos amigos mais próximos, assim como pelos demais convidados. Entretanto, esta noite de alegria me provoca pesar, pois não posso me esquivar da indignação que sinto diante de alguns equívocos que temos repetido durante os últimos anos. Todos os mais íntimos sabem do assunto que pauto, e espero que, assim como eu, se repreendam também Mas evidenciarei o tema para os indivíduos mais distraídos e para os novos convidados. Iniciarei rejeitando os mal tratos que temos dedicado a nossos colaboradores. Essas pobres criaturas que não tem como se defender são alvos das mais diversas humilhações que a nossa cruel imaginação é capaz de cunhar. Sabemos que essa noite não é mais do que um novo turno desse tipo de atrocidade, todos sabemos disso, nós e eles. Em seguida, depois que um de nós estiver em condições avançadas de entorpecimento se iniciarão as nossas inconsequentes barbaridades. E para que?
Parte dos amigos aplaude. Fred não se detem.
_Contudo, existe questão, que por sua importäncia, necessita de pauta especifica. Sabemos do que se trata, algo a que reduzimos toda a nossa existencia, e que no momento eu me encontro liberto. O liquido, substancia que aprendemos a extrair e benficiar, tem sido o maior motivo de nossa lamentavel situação. Testemunho pois já me libertei desta substância, e acredito que vocês devam seguir o mesmo caminho. Vejam o estágio ao qual chegamos, qualquer motivo é suficiente para se engeri-lo, mas nunca haverá suficiente. Sabemos que o liquido é ilicito, e sabemos o custo que é se livrar dos residuos de sua produção. Não acredito que se possa seguir assim, por isso evoco o último resto de dignidade que nos resta e deixemos esta mancha em nossas histórias e assim possamos cultivar uma nova forma de humanidade.
Os presentes iniciaram um burburinho, alguns aplaudiram, outros deram uma forte risada, como se o pedido fosse mais uma idiossicrasia da festa. Mas Carmela não achou a menor graça, e fez a sua fala:
_Hipócrita, isso é o que é, um hipócrita. Discursa como se tivesse muita decência, mas sabemos que suas ações vão pra um caminho diverso. Discursa como se temesse a lei, como se não houvesse feito coisa pior. Você não sabe o que quer, a única coisa que procura é cultivar sua maioridade em relação aos demais. Meus amigos, esse discurso é só para isso, não veem? Ele só deseja mostrar a vulgaridade de nosso atos, e que ele, o iluminado de nosso grupo, recusa nossa bestialidade, como se a primeira besta não fosse ele, como se não fosse o criador do liquido. Quando ele nos acusou de sermos reprimidos, crianças mimadas que sentem vergonha de buscar a liberdade, quando já tinha esgotado qualquer vitalidade em seu corpo. Nós o seguimos de bom coração. E agora, de novo quase moribundo, inventa que devemos mudar nosso hábitos, como se com isso não fossemos sacrificar a originalidade de nós mesmos. E quando assim fizermos ele nos acusará de conservadores. Ele pensa que é ainda possível encontrar algo que o tire da letargia. Pois saiba, meu amado, que não existe mais nada. Não nos deixemos enganar por essa figura moribunda.
Fred olha indiferente a Carmela, com a luz de uma lâmpada branca refletindo o seu rosto. Carmela, em contraste, bufa de ódio, sentimento que ela ainda contiva. Ódio que foi crescendo a cada dia que compartia com Fred e seus comentários que invariavelmente, a desqualificavam. Mas como a única emoção que conseguia sentir era justamente este ódio, vivia ao lado de Fred.
Fred fitou lentamente os convidados que se divertiam com a briga do casal atrás da luz que pouca iluminava o salão.
_Desgraçado, se não fizesse esforço não teria organizado esta maldita festa pra despresivel como você. _bradou Carmela.
_Essa festa? Isso aqui? Não precisa me insultar. Eu sei que essa festa era para você, você que se diverte com este tipo de desgraça.
_Desgraçado é você, você que não sente mais nada, que é um infeliz, que não tem com quem contar. Essa festa estaria vazia se não fosse por mim.
_Pois tenho que reconhecer seu esforço em me agradar. Por exemplo este rapaz com quem você passou a noite conversando, ele sabe sobre as suas boas intenções? Será que ele é capaz de imaginar?
O rapaz em questão já não é mais capaz de caminhar por conta própria, cai no chao e começa vomitar.
_Meu querido, ele não poderia imaginar, pois ele era um presente. Um presente custoso, que me exigiu muita paciência, mas infelizmente ele agora poderá não cooperar, graças a seu gesto humanista.
O rapaz vomita tanto que um dos empregados carrega para uma das portas.
_Seu eu precisasse de uma criatura tão miserável eu mesmo teria buscado. Mas eu já não preciso disso. Inclusive meus queridos penetras, vocês sabem que quem se diverte mais com a festa são exatamente os nossos ilustres convidados? Desfrutem da bebida e preparem seus corações, pois a noite será entretida.
Jaime, um amigo antigo de Fred começa a gargalhar histericamente:
_Fred, meu caro, eu estava preocupado contigo, parecia que você tinha perdido a vontade nas pequenas artes, mas vejo que estava completamente enganado. Nunca tinha te visto tão irônico, e digo que este tempo que tem se mantido limpo tem te feito mal.
Fred boceja .
_Jaime, meu bom Jaime. Você sabe que esse detrito que o faz um pouco menos entediado, já não me causa qualquer comoção. Sabe que eu nunca estive tão lúcido e que tudo que digo é a mais crua verdade, e que se tem alguma ironia nisso tudo, e a falta de iniciativa de acabar ou começar com tudo de uma vez. A única ironia aqui é sua covardia para decidir o caminho a seguir.
Jaime disfarça o insulto e se retira para uma sala fechada. Carmela enxarcada de ódio, continua sua gritaria.
_ Nem o mais leal dos seus companheiros você preserva. Você não merece ninguém, muito menos a mim. Não adianta manter esse sorriso na cara, pois eu sei que você não sente nenhuma alegria, você não sente nada. Não sente mais nada.
Uma das amigas de Carmela, a abraça e sussurra algo em seu ouvido, parecia que queria acalmar a senhorita. Carmela estava transtornada, mas prestava atenção no que dizia a moça, até despencar em choro. Fred nunca a havia visto chorar, talvez fosse mentira. Mas seus os olhos estavam vermelhos. Uma de suas amigas a abraça e a conduz a um quarto.
Antes de se retirar ainda grita:
_Isto tudo é sua culpa.
Fred sabe que é verdade, mas não sente culpa alguma, nem acha graça na cena deplorável de Carmela. Ele resolve voltar a se aproximar na enorme vidraça que separa o salão do resto da noite. A vida continua lá fora e ninguém se importa. Fred busca mais uma vez qualquer coisa, sem conseguir encontrar. Não se frusta, pois já imaginava que não encontraria, talvez não tivesse o que procurar. Vira-se de costas e vê que ninguém se alterou com seu discurso.
O liquido já podia ser servido, o empregados passam pelo ambiente oferecendo taças. Apesar de sua indiferença, Fred orgulhoso reconhecia que realmente se tratava de iguaria. Oferecer a bebida para os convidados era um desperdicio para Fred, pois gente tão despreparada era incapz de desgutar artigo tão refinado. Para ele, só os membros deveriam desfrutar do Liquido.
Em alguns minutos o Liquido começa surtir efeito. Uma moça chora, mas talvez que qualquer relação com o intoerpecente. Alguém grita alto, apesar das suplicas de sua acompanhante para permanecer em silêncio. Um casal resolve se aproximar a um dos quartos, o que gera desconforto ao sujeito encarregado de abrir as portas. Um dos anfitriões se apressa em servir mais, para que os nervos relaxassem ou se exaltassem de vez.
Aos poucos a festa se torna o que deveria ser. Em breve um dos anfitriões iniciará as atividades. Esta noite será Jaime, que principia um discurso, mesmo sob o estado alterado dos presentes.
_Fred, caro amigo, sabe que durante todos estes anos, eu tenho estado ao seu lado, sempre o apoiei seduzido pela sua indiscutível inteligência e ousadia, e tenho que reconhecer que essa convivência constituiu momento de evolução para mim, contudo, como não poderia deixar de ser, em algum momento o brilho que no inicio ofusca nossos olhos, vai se esmaecendo em um inexpressivo fosco. Esta festa era para ti, Fred, pensamos em dar-lhe algum presente, algo que pudesse ressucitar suas adormecidas emoçoes. Entretanto, creio, após conversar com outros de nossos companheiros, que o seu tédio não tem mais limites. Já provaste de tudo, não existe sabor raro que não tenha sido objeto do seu paladar, e já não há nada nesta vida que te possa causar qualquer arrepio. Por isso é fato que nosso presente mais justo é transforma-lo em o homenageado da noite, diante de todos, para que não reste dúvida sob qual sensação é a mais aguda.
Fred sorri, mas no seu fundo está surpreso, pois sente medo. Sente medo da crueza de seus parceiros, assim como outros sentiram medo dele. Mas sobretudo, sente um outro tipo de medo, medo de ser desonrado como um daqueles estúpidos convidados que ignoravam a mais elementar das verdades. O medo, era algo que há muito não sentia. O medo lhe atrai, Fred começa a se excitar com o medo.
_Pois bem meus queridos, a dor pouco importa para quem já não vive. Logo se assim desejam eu pouco farei para evitá-la. Mas fiquem cientes, que assim que o fizerem, serei somente o primeiro , os demais sempre serão perseguidos pelo temor de serem os próximos.
_Sabemos disso Fred. Não foi uma decisão fácil, mas diante de tudo que já foi feito, talvez seja a senteça a ser cumprida por cada um de nós.
Ninguém mais ri no ambiente. Pedem a Fred que se levante, ele não obedece, um sujeito forte se aproxima e arrasta o atrofiado corpo de Fred. Neste instante trazem uma obscura cadeira de metal para o meio da sala, sob a qual Fred é atirado e amarrado. Em seguida uma moça traz um copo com um liquido verde que forçam Fred a beber. Ele grita e se debate, mas os músculos da face e do corpo vão aos poucos cansando. A carne fica fraca. Desiste de sua luta, enquanto os efeitos do químico que ingerira começam a se manifestar.
Carmela sai de dentro de uma das diversas salas. Ela com os olhos vermelhos e inchados, se aproxima lentamente. Já não aparenta tanto ódio, na verdade parece deter seus próprios passos, até se posicionar atrás da cadeira na qual  Fred esta pendurado.
Ela ergue os braços, mas hesita.
Fred percebe a hesitação, toma a palavra, balbuciada.
_Meus amigos, digo que não sinto rancor por nenhum de vocês, contudo quero fazer um ultimo pedido, um ultimo pedido de aniversario.
. Com as lágrimas lhe tomando novamente a face e os soluços lhe tomando a fala, Carmela responde:
_Meu amado Fred, apesar de nossas desavenças, sempre haverá algo que liga a nós dois. Também sei que faço isso pois coloco a decisão do grupo acima de tudo. Mas seguirei te amando e me encarregarei de realizar seu ultimo pedido.
_Pois bem, amigos. Eu desejo que a próxima seja esta vadia.
Carmela de uma vez mostra a todos como se extrai o liquido.

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