Conto 2
A lua iluminava uma trilha vermelha que
desenhava o caminho até a esconderijo do predador. Horácio observava oculto ao
longe, distância cuidadosamente mantida para não atiçar o faro do bicho. Ou quem
sabe por medo. Temia que caso a fera não o matasse, outra coisa o mataria.
Todos os cantos eram suspeitos: olhos vigiavam à espreita, um coro insuportável
de insetos camuflava a respiração dos inúmeros inimigos.
Seu corpo exausto pedia para parar e descansar,
quiçá retornar, buscar um lugar mais cômodo e seguro, mais quente, ao invés
daquela floresta fria e ameaçadora. O esforço despendido o castigava. E por que
tudo isso?
Horácio começa a recompor cada pegada
que o condenava ao presente cruel. Ela, ignorando que ele desejava permanecer
em casa, armou uma cesta com comida: _Quero comer no meio do mato_, dizia.
_Temos de sair um pouco desta casa. Quero ar fresco_. Mas Horácio sentia que
ela só queria contradizer seu desejo. O dia prometia ser gélido e pálido,
péssimo para um passeio tão improvisado. Ela, visivelmente, não tinha qualquer
plano traçado, simplesmente seguia uma vontade impulsiva, dissimulada em seu
sorriso constante.
Horácio, injuriado, sentia o corpo
sonolento, pedindo para não ir, mas não tinha coragem de contrariá-la. Eram tão
lindos seus longos cabelos, suaves como a pele do sofá, fios tão negros quanto
as cortinas fechando o quarto. A sua pele branca era tão macia quanto o toque
dos lençóis. Seu cheiro, sedutor, enfeitiçava de tal maneira que não se podia
mais pensar em algo que não fosse ela. Horácio sabia que nunca conseguiria
negar qualquer pedido seu, por mais tolo que fosse. Mas ela só pedia que a
acompanhasse a um piquenique.
Os dois se puseram em marcha. O caminho
que ela inventou era longo, parecia não ter fim. O dia já vinha alto e ela
ainda desejava cruzar um imenso pasto em busca de um rio, que não dava qualquer
sinal de estar próximo. Os dois seguiam, sem trocar qualquer tipo de palavra ou
qualquer afago, ela só balançava o deslumbrante vestido e vez ou outra soltava
algum suspiro armado com seu sorriso. E que sorriso! Toda vez que ela sorria,
Horácio se sentia mais atado àquele sorriso emoldurado em seus lábios tão
delicados.
Os dois se enveredavam cada vez mais por
um vasto e denso gramado. A tarde amena já não causava os incômodos do sol
ardente. Ela deslizava atraente, sempre arrastando Horácio para mais longe. Ele
tinha fome, mas ela obviamente não pararia antes do tal rio, mesmo que ele suplicasse,
ela se desculparia com qualquer aborrecimento. “Não tem problema Horácio,
pararemos em breve e você poderá finalmente saciar sua gulodice”. “Só até
encontrarmos um lugar especial para comermos”. “Se quiser voltar pode ir, eu
continuo sozinha”. Sabendo disso Horácio ficava quieto, preferia não se expor a
mais uma derrota.
Finalmente escutaram o som de água. Um
rio corria desesperado pelo pasto, alguns animais se aproximavam para beber de
suas águas. Horácio respirava fundo o ar leve. Ela escutava e ria, vaidosa de
mais uma vitória. Ele tentava sentir raiva, mas não conseguia. Ela era muito
perfeita para que alguém a odiasse.
Apesar da beleza da paisagem, ela segue
em frente. O caminho vai ficando mais odioso, o rio antes verde, fica turvo, a
grama tão bonita, fica rala e seca. Horácio deseja voltar, mas ela anuncia.
_Comeremos aqui_. Ele olha incrédulo para a paisagem espantosa, mas se senta
exausto. A única coisa que explode em beleza é ela, se destacando no meio de
tanta feiura.
Ela ajeita o vestido e se senta, abre a
cesta e a distribui sobre a toalha, inicia o almoço do faminto Horácio. Mostra
uma artificial surpresa com seu apetite. Os dois comem um pouco e também se
embebedam um pouco. Ela pega um pedaço de pão e ameaça jogá-lo longe. Horácio se
irrita uma vez mais com a brincadeira. Ela dá gargalhadas, ri até ficar
constrangida com a seriedade dele.
Ela se estica e apoia a cabeça em seu
colo, ele a olha obcecado pela beleza. Horácio fica paralisado, até que ela se
levanta e sugere que continuem a caminhada. Ela sabia como tragar alguém.
Os dois seguem até onde a grama volta a
nascer, cresce alta e dificulta o avanço. Mesmo com dificuldade, ela continua,
elegante. Já Horácio sofre para carregar a cesta ainda pela metade. Cansado
para. Apoia os braços sobre os joelhos, tenta se recuperar, enquanto ela corre
sua mão por arbustos e vai se aproximando da mata. Zona fechada, insegura e
perigosa. Ela age como uma criança que põe a mão no fogo demonstrando destreza
diante dos covardes. Horácio suplica para que retornem. Ela fica cabisbaixa,
apesar de não perder o sorriso. Horácio intensifica seus pedidos.
Ela se movimenta frenética. Algo parece
mal. Horácio pressente o perigo. Ela continua saltitando distraída. Horácio
implora, mas ela zomba girando a saia.
Ele grita. Ela olha assustada para ele.
Mas já é tarde. Uma enorme Fera de olhos vermelhos salta da sombra e, de uma
vez, agarra a moça.
Horácio fica entorpecido de medo. A
Fera, com a moça frágil pendurada na boca, fita-o. Ainda viva ela faz, com suas
últimas forças, um pedido de ajuda. Horácio não reage.
O robusto animal não perde mais tempo e
desaparece dentro da mata. Horácio só escuta o grito da amada e tomado pelo
coração se envereda pelo desconhecido. Não haverá mais volta.
O fraco corre sem parar, não olha para
trás. A mata é densa, fecha seu caminho a cada novo passo. Ele tenta acompanhar
o monstro seguindo o grito da amada:
_Me salve Horácio!
Ele vai se defendendo dos galhos das
arvores que descem violentos. Arranhando-o. Ele não se entrega. Avança
desesperado e não percebe que escurece rapidamente. A fera é veloz e logo se
distancia. Ele se esforça, mas não consegue acompanhar. A perde de vista.
Cansado, Horácio para, respira duro e
derrotado. Deixa o corpo cair. Olha voo no meio da escuridão. Canta, prometendo
uma morte.em volta, só agora percebe que está completamente perdido. Uma ave
desprezível levanta
A mata é cenário de histórias de finais
trágicos, onde os mais valentes e audacioso perecem, quem dirá o desajeitado
Horácio. Ele tenta retomar a respiração equilibrando o corpo sobre os joelhos.
Olha em volta, se vê trancado no labirinto de enormes troncos, sente um
calafrio como se seu corpo fosse atravessado por um infinito de agulhas.
A escuridão oculta todos os sinais da
Fera, já não há mais qualquer caminho que o conduzisse para algum lugar. Estariam
ele e ela condenados a morrer, somente questão de tempo. Se apoia sobre uma
árvore e sentiu sangue fresco em um dos troncos.
_Meu deus! Será que ela já estava
morta?_ Horácio tinha vontade de voltar pra casa, mas como abandoná-la no meio
da mata, sem a certeza de sua morte? Será que o sangue frio era apenas pista do
sangue que já não corria em suas veias? Horácio teme o pior, até escutar seu
nome:
_Horácio!
Era a voz dela. Esta viva.
Ele segue correndo. Sente que algo corre
ao seu lado. Se assusta. Pisa em falso e rola sobre uma pequena elevação, a
perna fisga com o mau jeito. Alguém ri no meio da escuridão. Horácio levanta e
olha assustado ao seu redor. Que ser maligno lhe espreita? Escuta passos, sente
que está sendo cercado, talvez tenha que lutar para sobreviver. Enfia a mão na
cesta e agarra o primeiro metal que encontra. Puxa-o com firmeza e salta para
fora uma reluzente faca de pão. Ridículo! Não lhe restam muitas alternativas a
não ser seguir em frente.
Retoma a busca sendo seguido por algo,
não consegue ver e por isso corre. Corre mancando por entre o breu, sentido que
cada árvore pinga um pouco de sangue. Sente que lágrimas também escorrem de seu
rosto.
Horácio não sabe se corre ao encontro
dela ou, cada vez mais para dentro da mata, ao encontro do predador. Cada curva
pode ser a armadilha final para o medroso Horácio.
_Quem este ai? pergunta.
Ninguém responde, Horácio só escuta uma
respiração descontrolada, mas não tem certeza se não é a sua própria. As pernas
doem, reclama pelo esforço deste salvamento fracassado. Pobre dela que morreria
tão jovem. Um ódio lhe toma o coração, pensa em parar. Mas sente alguém tocar
em seu ombro. Virá assustado e ataca. A lua, irônica, acende sua luz pela mata
e ilumina tudo. Horácio desesperado olha ao seu redor e se vê sozinho, só
estava ele e uma infinidade de troncos e folhas, o solo branco e liso. Ri de
seu próprio medo.
De repente um grito.
É a voz dela, nítida. Está perto.
Horácio busca. O luar ilumina algo ao fundo, algo difícil de distinguir.
Horácio vai pouco a pouco se aproximando, mesmo pressentido o perigo. Chega
mais perto. Consegue reconhecer algo na luz. A fera!
_Maldita lua que ilumina os caminhos que
antes não podíamos ver_.
Horácio procura um esconderijo da luz.
A lua ilumina uma trilha vermelha que
desenhava o caminho até o esconderijo do predador. Horácio observa oculto ao
longe, distância cuidadosamente mantida pelo medo.
Teme que caso a fera não o matasse,
outra coisa o mataria. Todos os cantos são suspeitos: olhos vigiam à espreita,
um coro insuportável de insetos camufla a respiração dos inúmeros inimigos. Ele
precisa salva-la.
Mas caso alcançasse a besta lutaria com
o que? Com a faca de pão? Era melhor esperar que a besta se aquietasse em algum
momento, então ele poderia atacar de surpresa. Horácio tenta refletir um pouco,
mas só continua tremendo em seu canto, esperando um momento ainda melhor, um
momento em que ele se envolveria de coragem, uma coragem que viria de dentro de
si e que por si só acabaria com o mostro.
Ela grita mais uma vez. O monstro se
movimenta frenético. Horácio teme que nunca haja um momento ideal de atacar. O
rapaz reúne coragem. Talvez, ela não merecesse o sacrifício. O bicho grita!
Um grito de animal. E depois completo
silêncio. O coração do moço treme, talvez fosse tarde demais, a coragem viria tarde
demais. A lua foca uma luz cadavérica, denunciando a posição de Horácio. Ele
lamenta o trágico fim de seu esforço, depois de tanto caminhar, com os pés
quase sangrado, com o peito quase tombando, ele finalmente havia perdido.
Porém sente também certo alívio. Pensa
em recobrar as forças para tentar o regresso, pelo menos ele ainda poderia se
salvar. Mas Horácio se comove ao ver rasgado o bonito vestido da moça em um
galho de árvore.
Repentinamente, um ódio enche seu corpo
e ele pega um pedaço forte de madeira com o qual vingaria sua amada. A mata de
repente se silencia, a lua generosa ilumina o caminho de Horácio até a posição
da fera.
Horácio respira metálico, controla sua
fúria para despejá-la de uma só vez na sua decisiva luta contra a besta, a
última tentativa de defender sua honra. Se aproxima aos poucos, pôde ver o
corpo do qual o sangue escoa, um corpo abatido, um corpo imenso.
Horácio olha apavorado o corpo da fera
decepado com as tripas estiradas ao redor. Olha apavorado, tão apavorado que
não vê sua morte se aproximando.
Muito inteligente!
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