sexta-feira, 16 de maio de 2014

conto 2




Conto 2
A lua iluminava uma trilha vermelha que desenhava o caminho até a esconderijo do predador. Horácio observava oculto ao longe, distância cuidadosamente mantida para não atiçar o faro do bicho. Ou quem sabe por medo. Temia que caso a fera não o matasse, outra coisa o mataria. Todos os cantos eram suspeitos: olhos vigiavam à espreita, um coro insuportável de insetos camuflava a respiração dos inúmeros inimigos.
Seu corpo exausto pedia para parar e descansar, quiçá retornar, buscar um lugar mais cômodo e seguro, mais quente, ao invés daquela floresta fria e ameaçadora. O esforço despendido o castigava. E por que tudo isso?
Horácio começa a recompor cada pegada que o condenava ao presente cruel. Ela, ignorando que ele desejava permanecer em casa, armou uma cesta com comida: _Quero comer no meio do mato_, dizia. _Temos de sair um pouco desta casa. Quero ar fresco_. Mas Horácio sentia que ela só queria contradizer seu desejo. O dia prometia ser gélido e pálido, péssimo para um passeio tão improvisado. Ela, visivelmente, não tinha qualquer plano traçado, simplesmente seguia uma vontade impulsiva, dissimulada em seu sorriso constante.
Horácio, injuriado, sentia o corpo sonolento, pedindo para não ir, mas não tinha coragem de contrariá-la. Eram tão lindos seus longos cabelos, suaves como a pele do sofá, fios tão negros quanto as cortinas fechando o quarto. A sua pele branca era tão macia quanto o toque dos lençóis. Seu cheiro, sedutor, enfeitiçava de tal maneira que não se podia mais pensar em algo que não fosse ela. Horácio sabia que nunca conseguiria negar qualquer pedido seu, por mais tolo que fosse. Mas ela só pedia que a acompanhasse a um piquenique.
Os dois se puseram em marcha. O caminho que ela inventou era longo, parecia não ter fim. O dia já vinha alto e ela ainda desejava cruzar um imenso pasto em busca de um rio, que não dava qualquer sinal de estar próximo. Os dois seguiam, sem trocar qualquer tipo de palavra ou qualquer afago, ela só balançava o deslumbrante vestido e vez ou outra soltava algum suspiro armado com seu sorriso. E que sorriso! Toda vez que ela sorria, Horácio se sentia mais atado àquele sorriso emoldurado em seus lábios tão delicados.
Os dois se enveredavam cada vez mais por um vasto e denso gramado. A tarde amena já não causava os incômodos do sol ardente. Ela deslizava atraente, sempre arrastando Horácio para mais longe. Ele tinha fome, mas ela obviamente não pararia antes do tal rio, mesmo que ele suplicasse, ela se desculparia com qualquer aborrecimento. “Não tem problema Horácio, pararemos em breve e você poderá finalmente saciar sua gulodice”. “Só até encontrarmos um lugar especial para comermos”. “Se quiser voltar pode ir, eu continuo sozinha”. Sabendo disso Horácio ficava quieto, preferia não se expor a mais uma derrota.
Finalmente escutaram o som de água. Um rio corria desesperado pelo pasto, alguns animais se aproximavam para beber de suas águas. Horácio respirava fundo o ar leve. Ela escutava e ria, vaidosa de mais uma vitória. Ele tentava sentir raiva, mas não conseguia. Ela era muito perfeita para que alguém a odiasse.
Apesar da beleza da paisagem, ela segue em frente. O caminho vai ficando mais odioso, o rio antes verde, fica turvo, a grama tão bonita, fica rala e seca. Horácio deseja voltar, mas ela anuncia. _Comeremos aqui_. Ele olha incrédulo para a paisagem espantosa, mas se senta exausto. A única coisa que explode em beleza é ela, se destacando no meio de tanta feiura.
Ela ajeita o vestido e se senta, abre a cesta e a distribui sobre a toalha, inicia o almoço do faminto Horácio. Mostra uma artificial surpresa com seu apetite. Os dois comem um pouco e também se embebedam um pouco. Ela pega um pedaço de pão e ameaça jogá-lo longe. Horácio se irrita uma vez mais com a brincadeira. Ela dá gargalhadas, ri até ficar constrangida com a seriedade dele.
Ela se estica e apoia a cabeça em seu colo, ele a olha obcecado pela beleza. Horácio fica paralisado, até que ela se levanta e sugere que continuem a caminhada. Ela sabia como tragar alguém.
Os dois seguem até onde a grama volta a nascer, cresce alta e dificulta o avanço. Mesmo com dificuldade, ela continua, elegante. Já Horácio sofre para carregar a cesta ainda pela metade. Cansado para. Apoia os braços sobre os joelhos, tenta se recuperar, enquanto ela corre sua mão por arbustos e vai se aproximando da mata. Zona fechada, insegura e perigosa. Ela age como uma criança que põe a mão no fogo demonstrando destreza diante dos covardes. Horácio suplica para que retornem. Ela fica cabisbaixa, apesar de não perder o sorriso. Horácio intensifica seus pedidos.
Ela se movimenta frenética. Algo parece mal. Horácio pressente o perigo. Ela continua saltitando distraída. Horácio implora, mas ela zomba girando a saia.
Ele grita. Ela olha assustada para ele. Mas já é tarde. Uma enorme Fera de olhos vermelhos salta da sombra e, de uma vez, agarra a moça.
Horácio fica entorpecido de medo. A Fera, com a moça frágil pendurada na boca, fita-o. Ainda viva ela faz, com suas últimas forças, um pedido de ajuda. Horácio não reage.
O robusto animal não perde mais tempo e desaparece dentro da mata. Horácio só escuta o grito da amada e tomado pelo coração se envereda pelo desconhecido. Não haverá mais volta.
O fraco corre sem parar, não olha para trás. A mata é densa, fecha seu caminho a cada novo passo. Ele tenta acompanhar o monstro seguindo o grito da amada:
_Me salve Horácio!
Ele vai se defendendo dos galhos das arvores que descem violentos. Arranhando-o. Ele não se entrega. Avança desesperado e não percebe que escurece rapidamente. A fera é veloz e logo se distancia. Ele se esforça, mas não consegue acompanhar. A perde de vista.
Cansado, Horácio para, respira duro e derrotado. Deixa o corpo cair. Olha voo no meio da escuridão. Canta, prometendo uma morte.em volta, só agora percebe que está completamente perdido. Uma ave desprezível levanta
A mata é cenário de histórias de finais trágicos, onde os mais valentes e audacioso perecem, quem dirá o desajeitado Horácio. Ele tenta retomar a respiração equilibrando o corpo sobre os joelhos. Olha em volta, se vê trancado no labirinto de enormes troncos, sente um calafrio como se seu corpo fosse atravessado por um infinito de agulhas.
A escuridão oculta todos os sinais da Fera, já não há mais qualquer caminho que o conduzisse para algum lugar. Estariam ele e ela condenados a morrer, somente questão de tempo. Se apoia sobre uma árvore e sentiu sangue fresco em um dos troncos.
_Meu deus! Será que ela já estava morta?_ Horácio tinha vontade de voltar pra casa, mas como abandoná-la no meio da mata, sem a certeza de sua morte? Será que o sangue frio era apenas pista do sangue que já não corria em suas veias? Horácio teme o pior, até escutar seu nome:
            _Horácio!
Era a voz dela. Esta viva.
Ele segue correndo. Sente que algo corre ao seu lado. Se assusta. Pisa em falso e rola sobre uma pequena elevação, a perna fisga com o mau jeito. Alguém ri no meio da escuridão. Horácio levanta e olha assustado ao seu redor. Que ser maligno lhe espreita? Escuta passos, sente que está sendo cercado, talvez tenha que lutar para sobreviver. Enfia a mão na cesta e agarra o primeiro metal que encontra. Puxa-o com firmeza e salta para fora uma reluzente faca de pão. Ridículo! Não lhe restam muitas alternativas a não ser seguir em frente.
Retoma a busca sendo seguido por algo, não consegue ver e por isso corre. Corre mancando por entre o breu, sentido que cada árvore pinga um pouco de sangue. Sente que lágrimas também escorrem de seu rosto.
Horácio não sabe se corre ao encontro dela ou, cada vez mais para dentro da mata, ao encontro do predador. Cada curva pode ser a armadilha final para o medroso Horácio.
_Quem este ai? pergunta.
Ninguém responde, Horácio só escuta uma respiração descontrolada, mas não tem certeza se não é a sua própria. As pernas doem, reclama pelo esforço deste salvamento fracassado. Pobre dela que morreria tão jovem. Um ódio lhe toma o coração, pensa em parar. Mas sente alguém tocar em seu ombro. Virá assustado e ataca. A lua, irônica, acende sua luz pela mata e ilumina tudo. Horácio desesperado olha ao seu redor e se vê sozinho, só estava ele e uma infinidade de troncos e folhas, o solo branco e liso. Ri de seu próprio medo.
De repente um grito.
É a voz dela, nítida. Está perto. Horácio busca. O luar ilumina algo ao fundo, algo difícil de distinguir. Horácio vai pouco a pouco se aproximando, mesmo pressentido o perigo. Chega mais perto. Consegue reconhecer algo na luz. A fera!
_Maldita lua que ilumina os caminhos que antes não podíamos ver_.
Horácio procura um esconderijo da luz.
A lua ilumina uma trilha vermelha que desenhava o caminho até o esconderijo do predador. Horácio observa oculto ao longe, distância cuidadosamente mantida pelo medo.
Teme que caso a fera não o matasse, outra coisa o mataria. Todos os cantos são suspeitos: olhos vigiam à espreita, um coro insuportável de insetos camufla a respiração dos inúmeros inimigos. Ele precisa salva-la.
Mas caso alcançasse a besta lutaria com o que? Com a faca de pão? Era melhor esperar que a besta se aquietasse em algum momento, então ele poderia atacar de surpresa. Horácio tenta refletir um pouco, mas só continua tremendo em seu canto, esperando um momento ainda melhor, um momento em que ele se envolveria de coragem, uma coragem que viria de dentro de si e que por si só acabaria com o mostro.
Ela grita mais uma vez. O monstro se movimenta frenético. Horácio teme que nunca haja um momento ideal de atacar. O rapaz reúne coragem. Talvez, ela não merecesse o sacrifício. O bicho grita!
Um grito de animal. E depois completo silêncio. O coração do moço treme, talvez fosse tarde demais, a coragem viria tarde demais. A lua foca uma luz cadavérica, denunciando a posição de Horácio. Ele lamenta o trágico fim de seu esforço, depois de tanto caminhar, com os pés quase sangrado, com o peito quase tombando, ele finalmente havia perdido.
Porém sente também certo alívio. Pensa em recobrar as forças para tentar o regresso, pelo menos ele ainda poderia se salvar. Mas Horácio se comove ao ver rasgado o bonito vestido da moça em um galho de árvore.
Repentinamente, um ódio enche seu corpo e ele pega um pedaço forte de madeira com o qual vingaria sua amada. A mata de repente se silencia, a lua generosa ilumina o caminho de Horácio até a posição da fera.
Horácio respira metálico, controla sua fúria para despejá-la de uma só vez na sua decisiva luta contra a besta, a última tentativa de defender sua honra. Se aproxima aos poucos, pôde ver o corpo do qual o sangue escoa, um corpo abatido, um corpo imenso.
Horácio olha apavorado o corpo da fera decepado com as tripas estiradas ao redor. Olha apavorado, tão apavorado que não vê sua morte se aproximando.

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