quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Reinações de Narizinha - Monteiro Lobato


No outro dia a menina levantou-se muito cedo para levar a boneca ao
consultório do doutor Caramujo. Encontrou-o com cara de quem havia comido um
urutu recheado de escorpiões.
— Que há, doutor?
— Há que encontrei o meu depósito de pílulas saqueado. Furtaram-me
todas...
— Que maçada! — exclamou a menina aborrecidíssima. – Mas não pode
fabricar outras? Se quiser, ajudo a enrolar.
— Impossível. Já morreu o besouro boticário que fazia as pílulas, sem haver
revelado o segredo a ninguém. A mim só me restava um cento, das mil que comprei
dos herdeiros. O miserável ladrão só deixou uma — e imprópria para o caso porque
não é pílula falante.
— E agora?
— Agora, só fazendo uma certa operação. Abro a garganta da boneca muda e
ponho dentro uma falinha, respondeu o doutor, pegando na sua faca de ponta para
amolar. Já providenciei tudo.
Nesse momento ouviu-se grande barulheira no corredor.
— Que será? — indagou a menina surpresa.
— É o papagaio que vem vindo — declarou o doutor.
— Que papagaio, homem de Deus? Que vem fazer aqui esse papagaio?
Mestre Caramujo explicou que como não houvesse encontrado suas pílulas
mandara pegar um papagaio muito falador que havia no reino. Tinha de matá-lo para
extrair a falinha que ia pôr dentro da boneca.
Narizinho, que não admitia que se matasse nem formiga, revoltou-se contra a
barbaridade. — Então não quero! Prefiro que Emília fique muda toda a vida a sacrificar
uma pobre ave que não tem culpa de coisa nenhuma.
Nem bem acabou de falar, e os ajudantes do doutor, uns caranguejos muito
antipáticos, surgiram à porta, arrastando um pobre papagaio de bico amarrado. Bem
que resistia ele, mas os caranguejos podiam mais e eram murros e mais murros.
Furiosa com a estupidez, Narizinho avançou de sopapos e pontapés contra os
brutos.
— Não quero! Não admito que judiem dele! – berrou vermelhinha de cólera,
desamarrando o bico do papagaio e jogando as cordas no nariz dos caranguejos.
O doutor Caramujo desapontou, porque sem pílulas nem papagaios era
impossível consertar a boneca. E deu  ordem para que trouxessem o segundo
paciente.
Apareceu então o sapo num carrinho. Teve de vir sobre rodas por causa do
estufamento da barriga; parece que as pedras haviam crescido de volume dentro.
Como ainda estivesse vestido com a saia e a touca da  Emília, Narizinho viu-se
obrigada a tapar a boca para não rir-se em momento tão impróprio.
O grande cirurgião abriu com a faca a barriga do sapo e tirou com a pinça de
caranguejo a primeira pedra. Ao vê-la à luz do sol sua cara abriu-se num sorriso
caramujal.
— Não é pedra, não! — exclamou contentíssimo. — É uma das minhas
queridas pílulas! Mas como teria ela ido parar na barriga deste sapo?...
Enfiou de novo a pinça e tirou nova pedra. Era outra pílula! E assim foi indo
até tirar lá de dentro noventa e nove pílulas.
A alegria do doutor foi  imensa. Como não soubesse curar sem aquelas
pílulas, andava com medo de ser demitido de médico da corte.
— Podemos agora curar a senhora Emília — declarou ele depois de costurar a
barriga do sapo.
Veio a boneca. O doutor escolheu uma pílula falante e pôs-lhe na boca.
— Engula duma vez! — disse Narizinho, ensinando à Emília como se engole
pílula. E não faça tanta careta que arrebenta o outro olho.
Emília engoliu a pílula, muito bem engolida, e começou a falar no mesmo
instante. A primeira coisa que disse foi: “Estou com um horrível gosto de sapo na
boca!” E falou, falou, falou mais de uma hora sem parar. Falou tanto que Narizinho,
atordoada, disse ao doutor que era melhor fazê-la vomitar aquela pílula e engolir
outra mais fraca.
— Não é preciso — explicou o grande médico. — Ela que fale até cansar.
Depois de algumas horas  de  falação,  sossega  e  fica  como  toda  gente.  Isto  é  “fala
recolhida”, que tem de ser botada para fora.
E assim foi. Emília falou três horas sem tomar fôlego. Por fim calou-se.
— Ora graças! — exclamou a menina. — Podemos agora  conversar como
gente e saber quem foi o bandido que assaltou você na gruta. Conte o caso
direitinho.
Emília empertigou-se toda e começou a dizer na sua falinha fina de boneca de
pano: — Pois foi aquela diaba da dona Carocha. A coroca apareceu na gruta das
cascas...
— Que cascas, Emília? Você parece que ainda não está regulando...
— Cascas, sim — repetiu a boneca teimosamente.
— Dessas cascas de bichos moles que você tanto admira e chama conchas. A
coroca apareceu e começou a procurar aquele boneco...
— Que boneco, Emília?
— O tal Polegada que furava bolos e você escondeu numa casca bem lá no
fundo. Começou a procurar e foi sacudindo as cascas uma por uma para ver qual
tinha boneco dentro. E tanto procurou que achou. E agarrou na casca e foi saindo
com ela debaixo do cobertor...
— Da mantilha, Emília!
— Do COBERTOR.
— Mantilha, boba!
— COBERTOR. Foi saindo com ela debaixo do COBERTOR e eu vi e pulei
para cima dela. Mas a coroca me unhou a cara e me bateu com a casca na cabeça,
com tanta força que dormi. Só acordei quando o doutor Cara de Coruja...
— Doutor Caramujo, Emília!
— Doutor CARA DE CORUJA. Só acordei quando  o doutor CARA DE
CORUJÍSSIMA me pregou um liscabão.
— Beliscão — emendou Narizinho pela  última vez, enfiando a boneca no
bolso. Viu que a fala da Emília ainda não estava bem ajustada, coisa que só o tempo
poderia conseguir. Viu também que era de gênio teimoso e asneirenta por natureza,
pensando a respeito de tudo de um modo especial todo seu.

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